Wednesday 4 April 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XLV): At Bashi

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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10 e 11/10/2012

Jailoo é como os quirguizes chamam as pastagens de verão, locais nas montanhas para onde, de abril até mais ou menos o final de agosto, muitos deles se mudam com suas famílias e seus rebanhos de ovelhas, vacas ou iaques. No inverno, voltam para as cidadezinhas como Kochkor, onde têm suas casas. É claro, há muitos que não deixam as cidades mesmo no verão, mas é espantoso o número deles com quem falei que dizem que fazem a mudança quando começa a esquentar.

Pensando bem, nem é de se espantar. Não faz tanto tempo os quirguizes ainda eram completamente nômades. Só com os soviéticos, nos anos 1930, existiu um esforço das autoridades para acabar com a milenar tradição. Apesar do trauma dos 70 anos de regime, não foi (jamais seria) possível apagar da memória coletiva algo tão natural para este povo. Suas raízes estão nas montanhas. Suas raízes... são as montanhas. Ir para as montanhas é, para os quirguizes, como um ritual de adoração dos antepassados, da própria memória e da própria história.

Eu imaginava uma jailoo idílica - montanhas magníficas, cobertas com uma fina camada de neve fresca, circundando um vale com grama baixa e bem verde. A realidade foi um pouco diferente. As montanhas lindas com a neve estavam lá, mas a grama não era de um verde exuberante, pelo contrário. O que encontrei foi um matinho ralo, descolorido, misturado com barro e esterco. Foi o pouco que sobrou após meses de almoço do gado durante o verão inteiro em uma pastagem próxima a Kochkor.

Os cavalos nos trouxeram com paciência. Ao chegar à jailoo pareciam imensamente cansados, talvez já pedindo férias após tantos meses subindo e descendo, levando no lombo turistas sem a menor prática em montar. Eu, inclusive. Para isto, sou certamente urbano demais. Descobri que andar a cavalo, mesmo neste passeio curto de seis horas, uma ida e volta até esta jailoo, acabou me trazendo tanto prazer quanto dor. Uma dor constante e latejante no traseiro que começou com apenas 30 minutos de cavalgada. Que aumentava de intensidade a cada passo do cavalo, a ponto de, em dado momento, eu jurar que não voltaria a fazer isso jamais em minha vida. Meu cavalo, na verdade uma linda égua marrom, obedeceu sem resistir aos meus titubeantes comandos. Lembrei-me da única vez que havia cavalgado, quando tinha uns dez anos e fiz uma excursão aos pampas gaúchos. Daquela vez, o cavalo que me levava do nada se empinou sobre as patas traseiras e eu quase caí: maldito potro, odioso potro. Esta dama de quatro patas era diferente. Sua docilidade, porém nunca poderia compensar por completo o estado do terreno, a verdadeira raiz da tortura que se tornou minha jornada à pradaria nas montanhas. Buracos, pedregulhos, pedras, barrancos.

O prazer, por outro lado. Em determinado momento, me afastei do guia quirguiz, de Iker e de dois britânicos que de última hora se juntaram a nós na aventura. Eles estavam tendo problemas com seus cavalos, não eu. Daí que meu passo foi mais acelerado. Eu estava na frente uns 300 metros, já a uma distância que me permitia ouvir apenas os passos do cavalo e o vento leve passando entre as colinas, enquanto subia um aclive pouco acentuado pela trilha.

Nenhuma árvore, apenas a grama gasta e meio cinza, e nas montanhas as pedras com um pouco de neve. Tudo fresco, frio de uns 13 graus. Cavaleiro solitário em território desconhecido, prestes a ser emboscado pelos índios? Referências ao velho oeste vêm à memória.

Logo as referências vão embora e fica só a solidão. O vento, o clop-clop. A mente se mistura com o ambiente e não penso em nada.

Vinte minutos se passam. Atravesso um regato por uma ponte de madeira que primeiramente não acreditei que fosse aguentar a mim e à minha companheira. Mas a égua foi sem titubear. Tinha minha completa confiança.

E eis a jailoo.

Desmonto, sento em pedras entre a grama, o barro e o estrume. Iker e os outros chegam. A menina britânica (era um casal) cai feio ao tentar descer. Diz que não doeu e corre para se sentar nas pedras. Enquanto tiramos o queijo e a água das mochilas, olhamos para trás, verificando o caminho que fizemos, o distante horizonte entre as montanhas. Lá em baixo, a uns dez quilômetros, dá para ver Kochkor. Sem nenhuma nuvem de poluição, sem filtros. De novo, a conversa e a risada se calam. Agora, todos juntos olhamos a paisagem.

Almoçamos e, antes de montar nos cavalos para a volta e o retorno da dor no traseiro, Iker, eufórico, me surpreende com um abraço. Companheiro, companheiro, onde você me trouxe, companheiro. Que lugar lindo.

No dia seguinte, 8h da manhã, me despeço de vez do meu querido companheiro de viagem. Costumo sempre viajar sozinho, mas Iker me lembrou da alegria imensa que pode ser ter companhia. Foi um amigo para conversar em minha língua em alguns dos locais mais lindos e inóspitos onde já estive. Foi um grande amigo para enfrentar junto comigo policiais corruptos e o mal de altitude, refeições horrorosas e banquetes maravilhosos, fronteiras ameaçadoras. De Dushanbe a Kochkor, três países. É passando por aventuras juntos que as pessoas se tornam parentes. Quanta gratidão. Desta vez, fui eu que não resisti e tomei a iniciativa de lhe dar um abraço, um forte abraço, feito de saudade imediata, traduzindo todos os meus desejos sinceros de boa fortuna.

Em seguida, Iker e os britânicos embarcam juntos em uma van rumo a Bishkek. O veículo arranca e eu fico do lado oposto da avenida, contra o Sol, olhando a van até vê-la sumir completamente, meio ofuscado pela luz, tremendo de frio, com o vento do inverno chegando.

A viagem continua. Estou sozinho de novo. Esperando o carro para Naryn.


* * *

A nova cidade chegou logo, em apenas duas horas de estrada.

Novamente, visões de faroeste. À beira do rio Naryn (que vai depois formar o Syr Darya), logo na entrada da cidade, uma baixa colina surge. Vermelha, vermelhíssima, a cor dos desfiladeiros do Grand Canyon, com a vegetação rasteira dos desertos. O monte vermelho, o rio, dois ou três quarteirões de casas; depois, adentro pela avenida Lênin, a principal artéria da cidade. O horizonte fica bloqueado de picos nevados. Seguindo pela Lênin, logo encontro a prefeitura no modesto centro da cidade.

A dois quilômetros da prefeitura, novamente à beira da mesma avenida, uma única construção chama muito a atenção. Trata-se de uma mesquita, mas uma mesquita como nenhuma outra.

Sua fachada é absolutamente bizarra. A fachada traz um mosaico de espelhos e "asas" ornamentais em cada um dos lados da entrada. Tudo azulado e verde, com brilhos. Parece algo inspirado em Gaudí, um desvario, uma tentativa clara de romper com qualquer estética tradicional. Nada que lembre a honrada simplicidade dos mazars sufis de Shymkent, ou os azulejos timuridas de Samarkand, ou os magilas de barro no Pamir, ou as intrincadas fachadas karakhanidas de Özgön. Nada da energia e força dessas construções assentadas na história, mas muita energia e força advinda de um atrevimento jovem, criativo, inocente. Algo que diz "sabemos como uma mesquita deve ser, vamos fazer algo diferente, inédito, que tenha a ver conosco".

O "a ver conosco" fica mais claro com a sutileza interna. Dentro da mesquita, a pequena sala de orações é coroada por uma abóboda sem frases na linda caligrafia árabe, como se vê em muitos templos do tipo. Em vez disso, o teto foi pintado com linhas que recriam o que uma pessoa vê no teto de uma tradicional iurta quirguiz.

Ver isso me fez automaticamente sorrir. Eis a beleza do sincretismo, a cultura local se mesclando com o Islã global, sendo que a cultura local é muitas vezes mais antiga que o próprio Islã. Nada mais natural do que criar uma mesquita-iurta.

As cores e os espelhos da fachada ajudam o templo a se destacar no frio intenso do inverno, refletindo o Sol nos meses de congelamento. Uma edificação pequena, mas que pode ser vista de longe, notada por quem vem pelas montanhas, com seus cavalos, voltando das jailoos.

Sim, uma mesquita estranhíssima, mas que faz completo sentido.


* * *

Após duas horas e meia em Naryn, novamente ponho o pé na estrada, novamente em direção ao sul, continuando na mesma direção que segui desde que deixei Kochkor. A ideia era dormir em algum lugar ainda mais perto da fronteira chinesa, continuando esse namoro com a divisa que vinha desde Murghab. Meu objetivo era visitar, no dia seguinte, o lendário Tash Rabat, provavelmente o mais conhecido caravançarai (estalagem de caravanas) da Rota da Seda, num lugar isolado em meio às montanhas.

A vila de At Bashi me pareceu um local perfeito para usar como base por ficar perto do Tash Rabat. Eu agora estava acompanhado de uma suíça que eu havia conhecido em Naryn e que, como eu, queria visitar o Tash Rabat no dia seguinte. Uma senhora de uns 60 anos, magra e miúda, loira e com olhos claros e tristes, fumante compulsiva, sorridente por ter encontrado alguém que falasse inglês, um ar de sedenta por aventura, mas também de cansada de viajar sozinha. Conversamos, fizemos uma aliança e decidimos dividir o táxi para At Bashi.

Lá chegando, ficamos impressionados com as montanhas nevadas no horizonte ao redor da vila. Os picos, disse ela, a faziam lembrar de seu país.

Logo encontrei um família disposta a nos acolher para passar a noite. A casa ficava ao lado de um planalto. Era possível subir por uma trilha até a parte superior, um descampado onde ficava um cemitério. Um cemitério que, à distância, de baixo, parecia uma pequena cidade, com seus curiosos mausoléus. Um cemitério com uma vista gloriosa dos picos nevados. Uma vista para ressuscitar os mortos. Na ausência de atrações óbvias na vila, foi para onde fomos, aproveitar o dócil Sol do fim de tarde.

Os curiosos mausoléus foram, como em Naryn, mais uma manifestação de sincretismo religioso.

Eram tumbas com formatos diversos, quase sempre coroadas com o crescente do Islã. Havia tumbas na forma de pequenas mesquitas. Algumas, muito simples e antigas, feitas de barro moldado, quase tão primitivas quanto os magilas do Pamir. Outras, mais elaboradas, com cúpulas perfeitas. Várias tumbas copiavam iurtas. Expostas aos elementos, algumas estavam semidestruídas - em alguns casos, apenas os esqueletos de metal das tumbas-iurtas sobreviveram.

São estruturas melancólicas. Iurtas que hoje nada protegem, que um dia foram fortalezas, hoje, apenas metal nu fazendo sombra.

Além da vista incrível das montanhas, o cemitério oferece um panorama privilegiado também do vilarejo em si. É tão bem localizado que poderia ter sido o lugar de uma fortaleza ou castelo. Muitas tumbas ficam logo ao lado da encosta do planalto, uma queda de uns 30 ou 40 metros até onde está a vila. As montanhas gigantes à distância ao redor encurralam uma névoa sobre as casas. Só é possível ver os tetos. O resto delas está mergulhado em um branco que se dissolve e volta a se formar, delicado como seda.

O Sol dourado das seis da tarde torna tudo mágico. Ele se despede com força diretamente sobre os olhos, forçando piscadas e piscadas, e entre piscadas fazendo surgir delírios de sombras no cemitério.

As sombras fantasmagóricas ficam douradas, os mortos agora vestem suas ricas roupas de festa e saem para passear.

Nas lufadas inconstantes de vento gelado se ouvem canções que não se parecem com nada que já ouvi. Melodias difusas, duas ou três notas que se repetem. Produzidas pelo vento tocando os esqueletos de metal das tumbas-iurtas como se as barras metálicas fossem flautas. Ou tocando a própria imaginação.

Quatro vacas lá em baixo na cidade ouvem a melodia arcana e mugem em resposta.

Silêncio uns segundos. Depois, volta o vento, mais melodia e mais melancolia.

O baile dourado dos mortos acaba em poucos minutos, quando a noite chegar.

Desço do planalto, de volta ao mundo dos vivos. Encontro crianças andando de bicicleta na rua. Já era lusco-fusco. Aproximam-se de mim, curiosíssimas, como sempre. Sou um portal para outra realidade, a que muitos deles nunca verão. Um barbudo brasileiro tão longe de casa.

Respondo às perguntas que entendo. Saúdo uma velhinha que aparece com sua neta e peço para tirar fotos dela com as crianças. A velhinha sorri, meio sem acreditar que se transformou numa atração turística. Todos, não só ela, me olham com incredulidade. Na hora da foto, todos sorriem. Que lindos que eles são.

Volto para a casa, plov e cerveja, papo com a suíça, perfeito. Mas quando me enfio embaixo dos edredons, percebo que terei problemas. É a noite mais gelada de toda a viagem até agora. O quarto não tinha aquecimento. Dentro dele, temperatura seguramente próxima de zero. Peço mais edredons, mais cobertores. Tremendo, aos poucos vou esquentando. Sou engolido pela cama.

Sonho em tons dourados.

Desapareço. Desmaterializo.

At Bashi, 12/10, 8h50

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