Sunday 4 March 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XXXVI): Murghab

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1/10/2012

Me preparei mal para o Pamir.

Nos pés, tênis de corrida - o único calçado que eu trouxe nesta viagem. Neste momento, caminho na neve. À minha frente, prossegue a subida, uns 20 graus de aclive. O caminho é ou completamente branco ou sobre rochas descobertas, rochas às vezes do tamanho do meu pé, às vezes maiores, às vezes soltas, às vezes firmes, sempre tortas, sempre complicadas de pisar e ganhar equilíbrio.

O Sol é forte, no rosto. E o óculos funciona muito bem, escurece demais. Eu o fico tirando para ver melhor as pedras, mas não aguento muito tempo e tenho que colocá-lo de novo, e o processo se repete, e se repete, e se repete.

Estou derretendo de suor sob a jaqueta, usando dois casacos por baixo, enquanto sinto muito frio nas partes descobertas. Deveria parar e tirar um dos casacos, mas não quero atrasar mais o grupo.

As plantas estão todas congeladas neste palco a mais de 4.500 metros de altitude. Meus pés também estão encharcados de neve derretida. O pobre tênis foi feito para deixar o pé respirar e não para isolá-lo. Kim e Iker vão à frente de mim e, bem mais à frente deles, vai o nosso motorista-guia, gordinho e fumante, mas perfeitamente adaptado a este ambiente.

Paramos, ofegamos. Nosso guia garante: lá adiante, daqui a uns 500 metros, começa a subida final. E do outro lado, ainda totalmente invisível, na fronteira tajique-afegã, ele diz que iremos encontrar o lago Zorkul, apelidado de "Lago Vitória" pelos imperialistas britânicos do fim do século XIX, quando se divertiam no Grande Jogo no Pamir.

Não obstante, tudo leva a crer que não foram os britânicos os primeiros ocidentais a vê-lo. Seis séculos antes, Marco Polo teria passado por aqui. Provavelmente ninguém nunca conseguirá provar, mas os indícios geográficos colocam este lago em uma das descrições do grande diário, associando-o com o planalto:

E quanto (...) você cavalga três dias para o nordeste, sempre entre montanhas, você chega a tamanha altitude que dizem que é o lugar mais alto do mundo! E quando você chega a essa altura, você encontra um grande lago entre duas montanhas, e dele sai um lindo rio cruzando uma planície tomada pela melhor pastagem do mundo (...)
- The Travels of Marco Polo

Me atrai muito a ideia de vê-lo, compará-lo com a descrição histórica. Por isso, arrasto meus pés pelas pedras, afundo-os na neve.

Até aqui, andamos duas horas desde o ponto onde deixamos o carro, no planalto, quando já estávamos a uns 4.100 metros de altitude. Logo no início, a subida nos enganou. Ficamos pensando o tempo todo que ela ia acabar logo, naquela próxima montanha, naquela próxima colina. Parecia tão perto. Parece tão fácil! Que a verdade seja dita, até que a subida não é íngreme. Mas uma série de fatores tornam tudo progressivamente terrível. A neve é mais perversa inimiga - pise e reze para que, embaixo, não esteja escondido um buraco oculto, desses que afundam sua perna até o joelho. Tantas vezes isso me acontece.

E as rochas soltas, torcendo constantemente os pés. E o Sol no rosto, com o irritante óculos-não-óculos. E o tênis encharcado, criando lentamente bolhas por fricção. E os pulmões, que não enchem, não importa quão fundo se respire. E a sensação de estarmos perdidos, de que o motorista, como ocorreu nas altas montanhas perto de Jelondi, se enganou de rota no meio do nada, levando horas para se encontrar.

Paramos de novo. As montanhas são lindas, o céu, azul. Nos reclinamos nas pedras, relaxamos um pouco. São duas da tarde, aproximadamente. Ao redor, o cenário, como de costume, sem árvore alguma. Só com a neve-chantili, de um branco irreal. Acreditamos que estamos agora a 4.600 metros, mas é uma avaliação conservadora se considerarmos que o início do passeio foi a 4.100 metros (medidos no altímetro do carro) e estamos há tanto tempo caminhando. Talvez, então, 5.000 metros. Meu coração bate forte e rápido, mesmo relaxado. Parece estar repetindo o mantra de que sou um ser que vem das praias do Brasil. Que sou um ser que tem uma adaptação natural ao calor, à cerveja. Não a esta aventura. Isso passa rápido pela cabeça ao mesmo tempo em que converso com Iker e Kim. Tudo me parece tão, tão irreal. Irreal a ideia de uma pessoa como eu estar aqui, tão longe de tudo do que é familiar.

Pergunto novamente em russo ao motorista - quanto tempo ainda de caminhada até o lago? Diz que levaríamos pelo menos uma hora mais, isso com um bom ritmo (nas pedras e na neve). Insiste que tinha avisado que não seria tão perto assim. Fico em dúvida se ele falou mesmo isso. Realmente eu entendi algo bem diferente.

Conversamos entre nós, discutindo o que fazer. Explico que ou eu entendi errado o que o motorista disse em primeiro lugar, ou novamente ele mostrou ter uma ideia bem equivocada de suas próprias habilidades como guia. Explico que entendi que a jornada seria bem mais curta, em condições mais fáceis. Que entendi que teríamos que caminhar em uma estrada ou trilha, íngreme e difícil, mas que seria, sim, uma trilha, não uma caminhada por pedras soltas e neve escondendo buracos profundos. Assim, considerando tudo isso, apresento aos meus amigos meu voto, triste, mas veemente: sugeri encerrar mais cedo aquele rali de sofrimento. Disse a Iker e a Kim que, se não aceitassem seguir daquele ponto da caminhada de volta para o carro, os esperaria lá mesmo onde estávamos e que não ficaria chateado se eles continuassem sem mim até o lago. Mas os adverti que não me parecia uma boa ideia prosseguir.

Meus colegas ficaram divididos, mas, por fim, igualmente ressabiados com o guia, acabam concordando comigo, decidindo me acompanhar na volta.

Frustração.

A decida é mais rápida, apenas uma hora e meia de tropeços infinitos. Entramos na 4x4 e voltamos a enfrentar as rochas, areias e regatos, complemente fora de qualquer estrada, para chegar a nossa próxima parada, a cidade de Murghab.


* * *

O motorista está tenso. Pela terceira vez nesta viagem, a segunda vez no mesmo dia, tem que lutar pela nossa confiança.

Encontramos um motociclista com um passageiro. O motorista pede informações sobre como chegar à Rodovia do Pamir. Indicam uma direção. Parecem caubóis no deserto. Desaparecem sem se despedir, cavalgando em altas cilindradas pelo planalto.

Seguimos por essa direção que recomendaram. Lá longe, vemos uma casinha simples, no meio de uma planície de arbustos espinhosos e rasteiros. Uma casinha pintada de branco, teto de barro, no meio do nada, onde só perambulam iaques.

O carro para ao lado da porta. De dentro, sai uma solitária senhora, médio porte, dois casacos de lã grossos, cabeça coberta com seu véu branco, com seu solitário cão de pelos arrepiados, ambos meio atordoados pela visita de surpresa. O motorista a saúda e conversa com ela em quirguiz. Ela fala algo, algo mais e desaparece dentro da casinha. Volta com uma travessa de pão, iogurte e manteiga. Não há vacas por perto, só iaques, e estes são provavelmente a origem das delícias. Uma manteiga estranhamente leve, quase sem sal. Como de costume nesta região, ficamos comovidos com a hospitalidade de estranhos tão pobres e afastados de qualquer conforto.

O povo desta região do Pamir não parece, à primeira vista, vulnerável à morte. As preocupações nutricionais do Ocidente com o excesso de gordura na dieta, ou com a falta de vegetais, aqui parecem tão distantes quando um congestionamento ou um shopping center. As condições climáticas parecem ter reforçado essa resistência, ou, talvez justamente por causa das condições climáticas, uma dieta com muita gordura seja condição de sobrevivência. Há quase 100 anos, dois viajantes escreveram algumas reflexões sobre isso. Permanecem perfeitamente relevantes:

(...) Embora a saúde dos quirguiz seja, geralmente, excelente, eles na verdade morrem muito facilmente se adoecem, já que não há médicos no Pamir (...) é aparentemente um caso em que os mais fortes resistem. Pois eu nunca vi um povo mais resistente, homens e mulheres mais robustos do que os que eu encontrei durante nossa viagem. Eles vivem quase que inteiramente de leite (...)
- Through Deserts and Oases of Central Asia, Ella Sykes e Percy Sykes, 1920

Terminamos o pão com manteiga, agradecemos efusivamente, com alegria. E recebemos mais um sorriso da doce senhora solitária de véu branco, da casa branca, que vive no meio do nada onde perambulam iaques.

O carro segue perseguindo as indicações dela. Mais quirguizes. Encontramos um vilarejo. À volta, uma visão que não visitava meus olhos desde o início de minha viagem - um grupo numeroso de homens usando vistosos chapéu ak kalpak, símbolo da nação quirguiz, brancos, altos, com bordados pretos. Sorrio. O meu circulo está se fechando.

Novamente, o motorista para, conversa com um, que aponta para outro, que nos vende um pouco de gasolina. Todos agora falam apenas em quirguiz. Vejo uma escola. A fachada traz o "bem-vindo" em tajique e quirguiz. Todos neste vilarejo têm rosto quirguiz, como chineses, olhos bem puxados, uma aparência diferente dos pamires de Khorog ou os tajiques de Dushanbe, que se parecem mais com persas, com turcos. Aliás, na vila, não há nenhum sinal de pessoas com essas feições, nenhum sinal de Ismail Samani, nenhum retrato à vista do Aga Khan ou de Emomali Rakhmon.

Novamente, é o triste efeito das fronteiras soviéticas. Este território é 100% quirguiz, não tajique. É o mesmo que Bukhara, historicamente tajique e hoje dentro do território do Uzbequistão, e Khojand, uzbeque, mas hoje nas mãos de tajiques. Esses são povos que viviam juntos, que não deveriam ter fronteiras. São todos moradores do maravilhoso Turquestão.

Mas a realidade é que estamos numa vila quirguiz no Tajiquistão. Isso já gerou nesta região, como não poderia deixar de ser, tensão entre os quirguizes e as autoridades tajiques. Contudo, diferentemente do que acontece mais ao norte nos enclaves uzbeques e tajiques no Quirguistão perto de Isfara, aqui a distância da divisa internacional e os transtornos que a fronteira causa (por exemplo, o fato de a comunidade não ter de enfrentar verificação de documentos toda vez que atravessar a divisa para visitar parentes que moram bem perto) faz com que tudo aqui seja mais quieto e, claro, desconhecido no exterior.


* * *

Poucas horas depois, com a ajuda da asfaltada rodovia do Pamir e já no lusco-fusco, chegamos a Murghab, a mais importante cidade do nordeste do Tajiquistão. Ela aparece tímida, surgem primeiro poucas casas à esquerda do carro, após um lindo rio que cruzamos, também chamado Murghab. As águas borboleteiam por uma planície, curvas suaves. À direita, à distância, sei que atrás das montanhas se esconde a China - é primeira vez na viagem que ela está perto a ponto de me fazer imaginar como seria. Lá estão outras cidades lendárias da rota da seda que não conheço, Kashgar, Tashkurgan, Yarkand, Hotan - tão perto, mas tão separadas pelas muralhas colossais de pedra, pelas fronteiras erradas.

Novamente, em Murghab, um domínio absoluto de quirguizes. Descobrimos que nosso motorista é desta cidade (é quirguiz e daí vem sua fluência na língua). Ele nos leva diretamente ao restaurante de sua família. Pouco vejo da cidade.

Ao chegar, mais do que já vimos em Alichur. Há um padrão de filme de terror nos restaurantes desta região. Mas este me assustou ainda mais do que o da noite passada. Novamente, não havia luz; as poucas mesas seguravam cadeiras de ponta-cabeça. A porta estava parcialmente aberta para entrar alguma claridade, mas, onde sentamos, com dificuldade conseguíamos enxergar minhas mãos. Uma menina de uns 14 anos nos trás um lampião a gás. Seu rosto assume feições monstruosas com as sombras.

"Que romântico", graceja Kim, se referindo à luz trêmula em nossa mesa. Fico esperando que tragam o champagne.

A mesa está coberta por uma capa de plástico pegajosa e, embaixo dela, há uma toalha de pano com padrões florais. A sala é pequena. Nossa mesa, uma das três, fica encostada em uma das paredes, e o teto é baixo. Do lado oposto do salão há um balcão que leva à cozinha e, lá, uma mulher preparando algo na quase completa escuridão.

Nos trazem manti, uma espécie de ravioli grande, típico de toda a região. São cinco deles para cada um de nós, todos encharcados de óleo. Iker pergunta à menina onde pode lavar as mãos. Ela pede um segundo e volta não com uma bacia com água ou para nos dizer onde está o lavabo, mas para nos dar um pano sujo e molhado. Meu colega espanhol lembra que tinha um pequeno frasco de álcool no bolso e compartilha conosco.

Enfim, atacamos o prato. O manti desce com dificuldade, apesar de todo o lubrificante de óleo e da água quente que tomo. Engulo apenas quatro, apesar de estar morrendo de fome. A carne dentro do manti é bem gordurosa, sei que durante horas vou sentir o gosto dela em minha boca, não importa o quanto capriche ao escovar os dentes. Rezo para não ter um revés digestivo, agora que estou me recuperando do episódio em Ishkashim.

Saímos de lá meia hora depois. A cidade inteira está às escuras - aparentemente, a eletricidade é intermitente por aqui. Do que consigo ver, novamente tenho uma sensação de Velho Oeste. Uma cidade na fronteira, nos limites, uma cidade de gente resiliente. Varrida pela poeira, com casas simples, feias, de concreto, sem nenhum glamour ou beleza. Em muitos casos, as casas são simples contêineres, provavelmente trazidos pelos caminhoneiros chineses. Eles têm um ponto de travessia de fronteira 80 km a leste da daqui e certamente devem usar Murghab como parada logística.

Um lugar desolado, frio, feio, deprimente - e não estamos no inverno, quando esta cidade deve ser a mais perfeita representação da tristeza. Apenas um lugar para os seminômades quirguizes passarem os meses gelados a espera do momento em que podem ir armar suas iurtas nas gloriosas montanhas, como faziam seus ancestrais.

Murghab, 2/10, 21h46

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