Wednesday 28 March 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XLIII): Bishkek

O que é "Nos Desertos, Nas Montanhas"?
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8/10/2012

A Ásia Central e suas idiossincrasias.

Algumas delas: A ausência frequente de banheiros dentro das casas no interior, obrigando todos a enfrentar o frio lá fora no meio da noite. A presença constante e chamativa de dentes de ouro na boca dos simpáticos locais, muitas vezes substituindo todos os incisivos, os caninos, enfim, a maior parte da dentição. A ausência frequente de facas em restaurantes no Pamir. A presença constante, quase universal, de TVs mostrando videoclipes em restaurantes um pouco mais sofisticados (ou seja, aqueles que têm TVs), talvez um sinal de quão detestada é a TV aberta (pela presença dos políticos? Por só trazer programas velhos? Pelo sinal ser ruim?) ou de como todos amam a música pop (fascinação com o estilo de vida americano, carros, rappers, mulheres maravilhosas?). Todos esses temas dariam excelentes dissertações de mestrado, teses de doutorado, livros com vários volumes. Assim como os chapéus maravilhosos, as línguas, todas as cores e personalidades dos povos deste universo.

Mas se há uma idiossincrasia que representa um desafio formidável ao visitante na Ásia Central é a comida. Difícil morrer de amores pelo que comem tradicionalmente os quirguizes e cazaques, povos cujas culinárias se misturam. A vida nômade do passado gerou uma culinária entediante, muitas vezes sem gosto e às vezes, como vi inúmeras vezes no Pamir, praticamente intragável.

Os nômades das estepes não tinham lavouras, mas tinham cavalos, cabras, carneiros. E comiam carne. Muita carne. É assim até hoje. Nos restaurantes há uma predominância especialmente da carne de carneiro. Nos locais mais tradicionais, ou em festas, come-se também a de cavalo. A carne suína, proibida para os muçulmanos, é quase que completamente ausente.

Há muitas variedades de pratos para os não-vegetarianos, sendo que a mais palatável para o brasileiro é o shashlik, o espetinho de carne - que aliás é comido em toda a região, por uzbeques, turcomanos e tajiques também. Bem feito, é maravilhoso, assim como os Mantis, grandes raviolis cozidos, servidos em geral com creme de leite e uma pitada de endro em cima. Há o Beshbarmak (que significa "cinco dedos", numa referência à forma como deveria ser devorado), o prato mais festejado dos cazaques e quirguizes: carne de carneiro cozida e despejada sobre um ninho de talharim, como o de Osh. O talharim centro-asiático, o laghman, é comido como parte do beshbarmak ou em uma sopa com carne. São muito populares e fáceis de encontrar também as sopas russas, borsch, de beterraba - uma das poucas opções para os vegetarianos -, e salianka, com linguiça. Há o plov, o risoto uzbeque que se tornou um sucesso em toda a Ásia Central. Por fim, há as samsas, os pastéis triangulares semelhantes às samosas indianas, assados e com recheios diversos. Tudo muito simples.

Em alguns desses pratos, se nota a influência russa, como o uso do endro, ou chinesa, provável origem do laghman. Contudo, em se tratando de pratos realmente típicos cazaques e quirguizes, há alguns que realmente causam arrepios até nos mais aventureiros fãs da gastronomia. Hoje em dia, eles são vistos mais frequentemente em eventos especiais, como parte de um banquete. Falo, por exemplo, da cabeça de caneiro cozida (com os olhos, o cérebro e a língua). Ela deve ser fervida em um kazan, uma grande panela funda, e servida com algumas rodelas de cebola crua jogadas caoticamente por cima do crânio. Ao mais distinto convidado da festa, ou o mais velho membro da família, reserva-se a honra de comer um dos olhos. Nunca vi o prato por aqui, embora, em minha viagem, tenha encontrado cabeças de carneiro à venda no grande mercado de Almaty.

Hoje, em um restaurante de beira de estrada, enfrentando 10h de viagem de Arslanbob a Bishkek, relembrei mais duas possibilidades da culinária centro-asiática. Estávamos esfomeados, e o lugar estava às moscas (eram umas 15h, talvez todos já tivessem almoçado). Nos deram o menu. Eu e Iker escolhemos logo de cara shashlik. Não tinha mais. Escolhemos então outro prato, manti. Também não tinha mais. O que tinham eram apenas outras duas opções. Perguntei: oras, mas então para que nos dar menu? Bastava nos falar de cara o que tinham. Que piada. Apesar da fome, demos risadas.

A primeira opção disponível era um ensopado de batatas com pedaços de carne de carneiro, um prato chamado shorpo. Nada contra o shorpo. No Pamir, era geralmente isso ou laghman. E o shorpo do Pamir vinha sempre com carne de carneiro com muita gordura e muita batata. Enche a barriga e enjoa demais. Você sente toda a boca e a garganta cobertas de graxa. O gosto de água com gordura. Minha solução foi sempre colocar muita pimenta. Digo ao garçom, não, obrigado, estou evitando no momento. Quem sabe daqui a algumas semanas, quando o gosto de gordura tenha finalmente deixado minha boca, volto ao shorpo.

A segunda opção era pelmeni. Prato russo, é uma espécie de ravioli, mais pequeno que o manti, com recheio de (adivinhe) carne. Na Ásia Central inteira o pelmeni é servido numa sopa de caldo de (adivinhe) carne. Pedimos.

Nos trazem após longos dez minutos. Os raviolizinhos nos chegam boiando na sopa fervente com uma grossa camada de óleo na superfície. Pesco um, sopro, sopro mais, mas estou com fome demais e avanço no farol vermelho. Mordo. Queimo a língua e as gengivas. Dentro do pelmeni, gordura pura. Engulo. Aquela sensação familiar volta à garganta. O restaurante sequer tem uma coca-cola para acompanhar. De bebida, apenas uma opção, chá. Em duas variedades: verde ou preto. Ultimamente, tenho preferido tomar água quente.

Com Iker, passo aquele almoço tenebroso lembrando como sinto falta de gostos familiares, de boa pimenta e curry, principalmente. E lembrando da grata surpresa que foi aquele restaurante que descobrimos em Osh na noite em que chegamos. Excelente pimenta, excelente beshbarmak. Osh foi um oásis gastronômico, uma alegria maravilhosa.

Mas não tanto quanto Bishkek será. Comento com Iker: sim, lá é possível comer bem. Comer, aliás, todas as porcarias que os países de onde viemos nos dão. Pizza, hambúrguer. Fico salivando, num misto de fome e saudade. Meio envergonhado, afinal, pois parece que entrego a alma ao demônio toda vez que admito que quero um sanduíche com maionese. Meio envergonhado também porque eu adoraria me vangloriar de que comi os pratos da Ásia Central e descobri uma culinária misteriosa e divina, a comida de Shangri-lá! Fico pensando como alguns quirguizes devem achar tudo o que eu gosto de comer intragável. Da mesma forma que eu em relação aos pelmenis de gordura que eles aceitam sem pestanejar.

Enfim, terminamos aquele suplício de refeição. Me prometo devorar um x-hambúrguer ao chegar à capital quirguiz.


* * *

Bishkek, voltei, mas por pouco tempo. Desembarcamos na cidade no fim da tarde. Que felicidade reencontrar a capital! Já penso meu futuro. Em pouco tempo, voltarei para cá para viver por dois meses. Mas desta vez, será apenas uma noite. Em algumas horas, estarei a caminho de Kochkor, mais uma parada na viagem.

Bishkek nos recebeu com tempo e temperatura ótimos. Lembrei o já distante início desta aventura, com o Sol e o calor, quando eu ainda imaginava como seriam Khojand, o Pamir, Murghab.

O motorista que nos trouxe de Arslanbob nos deixou perto de onde iríamos passar a noite, um "hotel" no terceiro andar de um bloco de prédios soviéticos. Dificílimo de encontrar o tal "hotel". Tivemos que ligar duas vezes para o gerente para pedir orientação e ainda conversar com as pessoas que andavam nas redondezas - que ficaram surpresas ao saberem que ali funcionava um lugar para hospedar turistas. Uma senhora russa, com seu bebê no carrinho, foi categórica, espantadíssima, jurando que lá só havia apartamentos residenciais.

A nossa insistência deu resultado. Vencemos três lances de escadas mal iluminadas e sujas em um dos blocos e lá encontramos o lugar, que nada mais era do que o apartamento de um jovem que oferecia seus quartos para visitantes. Nada de especial no lugar, realmente parecia apenas um apartamento, mas cheio de mochileiros sem muito dinheiro. Provavelmente, algo totalmente ilegal, sem nenhum tipo de autorização especial das autoridades.

Foi melhor do que eu esperava. fiquei com Iker em um quarto espaçoso, o gerente falava inglês perfeito e recebi uma cama queen size. Na área comum, uma pequena sala com TV, cozinha coletiva e o acesso a dois outros quartos. Descarregamos as coisas, nos preparamos para voltar para rua para jantar e trocar dinheiro.

Perto da avenida Chuy e da praça Ala Too, dezenas de jovens bens vestidos, relaxados, namorando ou flertando, homens e mulheres. Comendo cheirosas samsas e shashliks. Minha saudade de comer porcarias acaba - no afã do fast food quirguiz. Não cumpro minha promessa a mim mesmo. Pego duas sansas, uma de queijo e uma de carne, e uma coca-cola. Estou satisfeitíssimo.

Bishkek, 8/10, 23h50

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