Sunday 25 March 2018

Nos Desertos, Nas Montanhas (XLII): Arslanbob

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7/10/2012

Um cheiro doce ao redor. Agradável, um pouco azedo. Lembra cheiro de limão. Mas onde estou não há limoeiros. É um bosque de árvores altas, frondosas, mas bem separadas entre si. Tenho muito espaço para caminhar entre elas chutando as folhas secas, para zanzar entre um e outro um pedacinho de luz que penetra pelos galhos. Nesses lugares em que o Sol entra, ele pinta as folhas secas que cobrem cada milímetro do chão. Elas ficam douradas, ocres.

Caminho rumo a um grande aclive no bosque. Lá em cima, ao lado de uma cerca de arame farpado, uma senhora, com um longo vestido verde e um lenço vermelho cobrindo os cabelos, usa um pau para revirar as folhas no chão. Tem um grande saco surrado de tecido em uma das mãos. Procura nozes.

Nogueiras. Este é o maior bosque de nogueiras do mundo - nada menos que 11 mil hectares, ou 110 quilômetros quadrados. Parece piada: eu jamais havia visto sequer uma nogueira; agora, é como se tivesse encontrado todas elas juntas no mesmo lugar, dezenas, centenas, milhares.

É grandioso.

Estamos no fim da colheita. As árvores já estão meio nuas para o inverno. Mas ainda há os aldeões de Arslanbob ziguezagueado, cutucando o chão. Eles passam o dia aqui, assim, com sacos, enchendo-os com os frutos caídos que encontram. O fruto, para mim, que sempre foi o símbolo do Natal e um mistério em termos de origem. Nunca vindo de perto de onde vivo. Sempre lançando a imaginação para algum lugar distante. Sempre chegando até mim como um presente de um mundo além de minhas fronteiras.

A primeira surpresa: não ficam pendurado nas árvores como encontramos no supermercado, com a casca bege cheia de rugas duras. Fiquei um tempo olhando para cima, ofuscado pelos flashes de luz nos meus olhos, tentando encontrar exemplos pendurados. Nada. Então, piso em algo e quase torço o tornozelo esquerdo. Uma esfera verde, meio rachada. Retiro a casca verde devagar e lá está, a familiar casca enrugada. Fico bobo. Bobamente maravilhado. Quantas coisas tão simples como esta fazemos pela primeira vez quase aos 40 anos de idade?

Levanto os olhos. Perto de mim, surge do nada uma mulher que calculo ter minha idade. Vem com sua filhinha de uns doze anos, as duas com vestidos coloridos e os véus, azul a mãe, vermelho, a filha. A mulher leva um bebê nas costas. Ela está com uma mão dada à outra, por trás, na altura dos quadris. A criança senta sobre as mãos dadas da mãe, com as pernas colocadas entre os braços e as ancas da mulher. E, ao mesmo tempo, a mulher leva nas mãos dadas um saco com nozes. Mesmo ainda longe de estar cheio, deve ser um suplício carregá-lo e ao mesmo tempo usar as mãos de cadeira para o bebê. A menina ao lado é forte - carrega uma pesada sacola, bem cheia dos frutos, imensa para seu tamanho, quase da metade de sua altura. Calculo que, talvez, esteja levando metade de seu próprio peso em nozes. E não vejo traço de exaustão em seu rosto.

Encontramos um portão aberto na cerca, depois de termos subido todo o aclive. Atravesso. Uma clareira no bosque vem a seguir, à beira de um vale. Lá em baixo, um riozinho quase invisível, com pequenas cascatas. À frente, do outro lado do vale, a uns 1600 metros de altura, Arslanbob. Por toda a parte no panorama, altos e esguios álamos. Atrás da cidade, iluminadas em cheio pelo Sol da tarde, montanhas nevadas, altíssimas, chamadas de montanhas Babash-Ata.

Ruazinhas de terra, um ou outro Lada 4x4 enfrentando os buracos. A cidade tem todo um clima alpino e rural, com vacas e ovelhas livremente nas ruas. Além de colher o que sobra das nozes, os moradores parecem todos muito ocupados empilhando feno para o inverno que, dizem, por aqui é feroz.

Mais uma cidade de lendas. A mais conhecida diz que um discípulo do Profeta Maomé saiu pelo mundo a procura do paraíso e encontrou um lindo vale, o vale onde está a vila. Mas, ao chegar, havia um problema. O lugar estava vazio de árvores. Ele enviou então uma mensagem ao Profeta comunicando sua descoberta. Em resposta, Maomé lhe mandou um saco com sementes e frutas, pedindo que as espalhasse pelo vale. Entre elas, nozes. O discípulo subiu no topo das montanhas e as lançou ao vento; as sementes brotaram e se transformaram numa linda floresta.

Mas há uma outra lenda que contradiz essa. Essa segunda fala da chegada de Alexandre, o Grande, a Arslanbob. O grande conquistador, que viveu séculos antes de Maomé, teria descoberto aqui a noz e a levou consigo. De alguma forma, ela teria assim chegado à Europa, teria originado os bosques de nogueiras do Velho Continente. Essa seria a origem do nome que os russos dão para o fruto, noz grega, supostamente por causa de Alexandre.

Dada a associação lendária com o Profeta, muitos por aqui consideram o vale de Arslanbob sagrado.

Certamente ele tem algo de mágico. Em um mirante à beira da floresta, ficamos, eu e Iker, uns 20 minutos descansando. Adormeci com rapidez e profundamente por metade desse tempo, aquecido pelo Sol que me ofuscava quando lentamente fugia para trás das montanhas. Sonhei com o sul de Minas Gerais, com a serra da Mantiqueira, com o conforto das pousadas, com o calorzinho e o friozinho.

Acordei sem sobressaltos. Serenamente abri os olhos, me sentei. E olhei ao redor. Arslanbob, a neve no topo das montanhas, as nogueiras. Que longa e curta viagem em um abrir de olhos. Talvez os olhos nem tenham se fechado, nem se aberto.


* * *

No caminho saindo da floresta para a casa onde estávamos hospedados, o Sol rapidamente se foi. Acompanhamos no ocaso uma família de ovelhas pelas ruas de terra, todos seguindo pelo melhor roteiro para evitar os dois ou três carros que circulavam pela cidadezinha. A casa-pousada, como em Tamchy, era associada a uma agência de turismo comunitário, que incentiva as pessoas a abrirem suas próprias moradas para que turistas possam se hospedar. A ideia parece ter sido abraçada com gosto pelos quirguizes, de norte a sul, para ganhar uns trocados a mais e, claro, manter a tradição milenar da hospitalidade e ampliar horizontes por meio dos viajantes. Foi só no Quirguistão que encontrei a iniciativa realmente funcionando e muito bem.

Chegamos a Arslanbob vindos de Osh às 14h30 e, logo ao descer da van, fomos abordados por um senhor simpático, falando inglês melhor do que o meu e o do meu amigo espanhol. Era o chefe da agência local de turismo comunitário, um uzbeque com um nome inesquecível - Hyatt, como o da rede de hotéis. (Ele certamente estava predestinado a trabalhar com hospedagem de turistas!)

Hyatt nos levou à sua casa, onde funcionava seu escritório. Lá encontramos uma sala com mapas e fotos de hospedagens pelas paredes e tudo escrito em inglês. Fiquei impressionado com a organização. Ele nos mostrou um catálogo com uma lista de possíveis hospedagens locais, umas dez ou quinze. Escolhemos, ele ligou para a dona da casa e pouco depois um motorista apareceu com um carro para nos levar lá. Hyatt comentou que agora Arslanbob tem turismo comunitário o ano inteiro, inclusive no inverno, já que turistas vêm para cá para esquiar. A cidade não tem uma estação de esqui, mas alguns entusiastas mesmo assim sobem as montanhas e exploram caminhos selvagens para descer a toda velocidade.

A acomodação. Fantástica. Ficamos na casa de uma senhora. Sua filha e netos (nenhum homem à vista) estavam ocupadíssimos ensacando milhares de nozes que tinham coletado na floresta e colhendo batatas da plantação no quintal para o inverno. As nozes estavam em um tapete em frente à casa, nunca vi tantas em minha vida, milhares, espalhadas por uma área de pouco mais de um metro quadrado. Nos deram um quarto com uma cama de casal e outra cama, de solteiro, e quilos de edredons. Café da manhã e jantar incluídos e um preço excelente, 530 som (cerca de US$ 24).

A tarde havia sido com uma temperatura amena, uns 16, 15 graus. À medida que a noite foi chegando, juntamente com ela veio um frio assombroso, que tomou conta do quarto sem calefação (o que explicava os quilos de edredons). Minha mão direita foi particularmente afetada pelo ar gélido. Fiquei sem sentir meu dedo indicador até a comida chegar: uma tigela de sopa quentíssima com legumes diversos, arroz, pedacinhos de carne e pão para acompanhar. Aqueci-me com piadas e risadas, planejando com Iker os próximos passos do nosso caminho.

Uma hora depois, novamente dormi com rapidez e profundamente. Sob as pesadas cobertas, em um dos locais mais abençoados pela natureza que eu já vi.

Arslanbob, 8/10, 07h30

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