Wednesday 7 February 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXIX): Dushanbe

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23/9/2012

Hissar é uma vila a cerca de 30 minutos de carro de Dushanbe. É conhecida pelos tajiques pela sua fortaleza, cuja origem remontaria a antes do imperador persa Ciro - que viveu no sexto século antes de Cristo. Foi atacada e praticamente inteira destruída pelo exército vermelho - uma das (dizem) 21 vezes em que este local foi demolido. Da construção sobraram os fantasmagóricos montes de argila, já familiares para mim, repetições de Otyrar, de Sauran, de Mug Tepe. Montes de argila com as fundações, os restos das muralhas. Mas não é pela história e sim por uma razão bem mais prosaica que este lugar é bem conhecido pelos tajiques em geral. O portal de entrada da fortaleza, reconstruído, recebeu a honra de ilustrar a nota de 20 somanis. Apresso-me em ser bem turista, tirando a foto obrigatória do monumento com a nota embaixo.

A construção, no território do antigo Emirado de Bukhara, foi um foco importante da resistência contra os bolcheviques. Aqui buscou refúgio um dos líderes do chamado movimento basmachi - os milicianos motivados por uma forte religiosidade muçulmana que, até os anos 30, foram uma dor de cabeça para Lênin e depois Stálin. Ibrahim Beg foi um de seus líderes mais conhecido (juntamente com o turco Enver Pasha). Fiel ao Emir de Bukhara - afastado do controle da cidade uzbeque, que passou ao controle de Fayzullah Khojaev por ordens de Moscou - Ibrahim permaneceu no forte até 1924, lutando pela volta do Emir, exilado no Afeganistão. Em 1925, porém, não resistiu às tropas do brilhante general bolchevique Mikhail Frunze e teve ele próprio que fugir para terras afegãs. De lá, comandou várias incursões armadas na então recém-nascida URSS até ser capturado e finalmente executado pelos soviéticos.

A fortaleza de Hissar não poderia ter sido erguida em lugar mais perfeito. O portal fica em um pequeno vale, separando duas colinas. Subindo a da direta, tem-se uma vista impressionante.

À minha frente, com o Sol das 13h queimando meu rosto, vejo o portal e duas madrassas (dos séculos XVI e XVII) construídas logo defronte à entrada. Entre o portal e as madrassas, uma grande algazarra na escada para o portal. Dança, tambores. Uns quatro casais recém-casados estão aqui ao mesmo tempo para tirar fotos e comemorar, como costumam fazer em todos os principais monumentos das cidades da Ásia Central.

À minha direita, a outra colina, do outro lado do pequeno vale, completamente tomado pelas ruínas semicobertas pela grama e pela poeira. O resto das muralhas circunda tudo. No centro desse vale, há também um campo de futebol improvisado, onde alguém deixou um camelo preso a uma das traves.

À esquerda, finalmente, as amorfas feições do monte que estou pisando e lá embaixo, à distância, a estrada que me trouxe aqui.

Vento, secura, altura. Me sinto um general, analisando o terreno, concebendo o futuro movimento de minhas tropas. Estou em uma versão de menos impacto do impressionante castelo de Edimburgo, mas sem as poderosas paredes de pedra que circundam e elevam a fortificação escocesa. Ainda assim, é uma edificação com impacto. Uma grandiosa demonstração do poder do Emir de Bukhara (veja o vídeo abaixo).



Os casais lá embaixo provavelmente nunca estiveram na Escócia. Se sabem de algo sobre o legado do Emir em Hissar, isso veio de histórias confusas e fantasiosas contadas de segunda mão por parentes idosos que conviveram com pessoas que eram vivas antes dos comunistas. Seus amigos, convidados dos casamentos, só querem saber de dançar. Uma tremenda barulheira, como a que vi naquela festa de circuncisão em Turkestan. Há um músico com um tambor, batendo forte e alto, sem ritmo. Há um senhor com um instrumento de sopro, nem flauta nem clarineta, um som parecido com o de uma mosca, subindo em agudos, descendo, indo e voltando ao ritmo sem ritmo do tambor. Não há uma melodia clara, há uma hipnose, o movimento do instrumento de sopro, o senhor, engravatado e suando rios no Sol, subindo o instrumento, descendo o instrumento, inflando as bochechas. Uma música para mim horrorosa, para eles, perfeita. Vejo logo imediatamente abaixo, mais perto de mim, os homens dançando uns com os outros. Batem palmas, dão pulos baixos, mexem as mãos, fazendo gestos estranhos. Mais para baixo da escadaria, um grupo menor, de mulheres, faz o mesmo, dançam entre elas. Homens e mulheres comemoram efusivamente, mas não se misturam na folia do "carnaval" em Hissar. (veja o vídeo abaixo).



Achei tão distante de mim aquela alegria segregada por sexos que, de repente, fiquei triste. Pensei: não há ninguém que eu conheça ou que poderia me conhecer aqui. Sou um penetra nessa festa. Essa alegria não é minha. Me apossar dela é condenável. Não entendo e nunca poderei entender essa forma de comemoração.

Contudo, essa tristeza, pura besteira, passou em seguida devido ao efeito estranho daquela música horrível. Após alguns minutos de hipnose, até eu, alienígena, queria bater palmas, admirar os vestidos coloridos das mulheres, os vestidos brancos das noivas, a fila de noivas que se formou para subir as escadas do portal e comemorar no alto. E bati palmas. E sorri.


* * *

Passaram-se uns dez minutos e uma cena de cortar o coração me arranca o sorriso de novo.

Pela rua ao pé da escadaria, um pobre filhote de cachorro passa. Cinzento, sujo, ignorado por todos. Com a boca aberta, arfando em meio à poeira, parece até que está sorrindo também. É a pobre criatura mais magra que já vi, um eco inimaginavelmente distante e próximo da Baleia de Graciliano Ramos. Conto cada vértebra, cada costela do pobre animal, identifico os ossos da bacia. Passa de lá para cá, de cá para lá, sonhando com alguma migalha, ninguém sequer olha para ele, só eu.

Os cães são considerados sujos, impuros para os muçulmanos. Já havia me espantado pela ausência deles durante minha viajem pelo Irã. No Tajiquistão, eu lamentei ter visto esse em Hissar e todos os outros cães de rua que cruzaram meu caminho. Foram poucos. Apenas sobreviventes.

No caminho de volta para o hotel, já de volta a Dushanbe, vi outra pobre alma na rua. Branquinho, quietinho, jogado numa sombra, obviamente desnutrido e doente. Achei que estava morto até que me aproximei e ele mexeu um pouco a cabeça. Fiz um carinho, vi um brilho no olhar. Me afastei, fui embora.

Nisso, o magrelo se mexeu, vindo na minha direção, e chegou perto de um vendedor de jornais. O vendedor esperou o momento certo em que a criatura passou mais perto dele e por um milímetro não lhe acerta um chute na barriga. O pé foi em cheio em uma de suas patas traseiras. O bicho, ganindo, saiu da calçada e quase foi atropelado.

Na cidade inteira, por onde andei, não vi nenhuma placa de veterinários oferecendo seus serviços (diferentemente de Almaty). Fiquei pensando que os cachorros podem estar pagando a conta de uma raiva do povo daqui, uma raiva profunda (raiva da falta de liberdade, da pobreza, do ditador) misturada com algum tipo de incapacidade de sentir amor por essas criaturas. Algo cultural, religioso, mas também a expressão da dureza da vida. Pode ser o reflexo de uma brutalização, legado de uma violenta guerra civil, onde a violência, em todas suas expressões, se tornou parte do cotidiano.


* * *

Urina devidamente amarelada, o processo de tomar remédios a cada dia devidamente iniciado, fecho no hotel a superequipe que vai enfrentar a viagem ao isolado e misterioso Planalto de Pamir. Uma viagem que parecia até pouco quase impossível devido aos incidentes de julho.

Desde Khojand, quando vi pela TV o presidente visitando Gorno-Badakhstan, eu não havia tido notícias da situação na região - se ela já poderia ser visitada por turistas, se a violência havia cessado. Também desde Khojand, eu havia seguido rumo a Dushanbe dando uma espécie de pulo no escuro, acreditando que tudo seria resolvido e eu poderia, de fato, viajar a Khorog, a capital do Pamir. Mas não tinha certeza e, caso não pudesse seguir para lá, não tinha nem ideia de para onde iria a seguir. Mas, no hotel, me informam que finalmente a estrada foi reaberta. Me avisam: "Você e seus amigos serão os primeiros estrangeiros a viajar para lá depois do banho de sangue de julho. Boa sorte".

Eis meus amigos, os meus companheiros nesta expedição, com os quais troco apertos de mão em um dos quartos coletivos do hotel. O primeiro é Iker, o espanhol. Eu o conheci na internet nos meses anteriores à viagem, quando eu já estava procurando uma pessoa para dividir os custos do transporte no Pamir. Encontrá-lo na distante Dushanbe, após tantos meses de espera e conversas virtuais, foi como encontrar um amigo de infância. Havíamos combinado que em tal dia ele estaria no hotel, eu também, e de lá partiríamos para a aventura. E lá estava ele. Alto, magro, careca, com barba e olhos claros, verdes. Bem espanhol, sem dúvida, meu amigo. Fala alto, sorriso constante, alegre, tremendo sotaque no castelhano. Um moleque com 35 anos, empolgante, empolgando a mim, empolgando ao terceiro elemento do grupo.

E o terceiro elemento, o elemento-surpresa, foi o fotógrafo Kim, de Singapura. Nós o conhecemos no hotel. Descobrimos que ele também estava tentando ir para o Pamir, mas por causa dos problemas por lá tinha ficado "entalado" em Dushanbe. Agora, com o caminho novamente aberto, contemplava suas opções. Na minha primeira conversa com ele, eu estava enrolando na cama, com medo de ir ao banheiro ver a cor de minha urina, e ele estava na cama ao lado arrumando a infinidade de equipamentos fotográficos e de vídeo que trazia na mochila. O singapurense me pareceu uma pessoa afável e simpática, mas quieta. Um tipo artístico, observador, introspectivo, com um humor inteligente e sutil. Trabalhava como fotógrafo em projetos de viagem e, quando não estava viajando, estava dando workshops. Já havia feito longas jornadas e tinha centenas de histórias para contar. Falei da minha planejada ida para o Pamir e ele logo mostrou interesse. Falei com Iker e ele adorou a ideia de ter mais um no grupo, para reduzir ainda mais os custos. Tentamos encontrar até um quarto elemento, não conseguimos.

A questão dos custos é algo importante. Visitar o Planalto de Pamir implica em providenciar transporte próprio, o que, evidentemente, não é barato. Há alguns que tentam explorar a região com transporte coletivo - de fato, há lotações que vão até Khorog e outras que saem de lá e vão esporadicamente para outras cidadezinhas. Entretanto, o transporte além de Khorog é muito incerto e deixa o explorador sem a liberdade necessária para explorar uma das regiões mais remotas do mundo. Mais ainda, corre-se o risco de ficar vários dias em um determinado lugar esperando transporte para seguir em frente, o que é uma péssima forma de passar os raros dias de férias que todos temos. Alugar um carro com motorista - no caso, uma 4x4 para enfrentar as estradas todas sem asfaltar e cheias de buracos - foi uma decisão fácil, porque, claramente, era a única solução.

De noite, a noite antes da nossa partida, tivemos uma reunião com Rozik e sua linda esposa. Rozik foi um contato recomendado pelo nosso livro-guia, um pamiri (natural do Pamir) especializado em organizar viagens para sua terra natal. Tomando conosco litros de chá preto para combater os calafrios da noite do lado de fora de uma casa de chá, o carismático Rozik explicou que já havia planejado tudo. De Dushanbe a Khorog, viajaríamos em um veículo 4x4 "regular", ou seja, uma lotação, transporte público, que dividiríamos com outras pessoas. Ele nos preparou psicologicamente para a estrada até Khorog, explicando que ela estava em péssimo, péssimo estado. Uma vez vencido esse primeiro rali, com duração estimada em umas 18 horas, para a viagem de Khorog até Osh (de volta ao Quirguistão) teríamos uma outra 4x4, desta vez particular, com nosso próprio motorista. Assim, poderíamos fazer qualquer passeio.

Serão dez dias no teto do mundo. Dez dias nas pegadas de Marco Polo.

Dushanbe, 23/9, 23h25

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