Wednesday 24 January 2018

Nos Desertos, nas Montanhas (XXV): Khojand

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19/9/2012

A história é escrita e reescrita.

Antigos heróis viram vilões, viram incômodos, viram sujeira para ser varrida para debaixo do tapete, para o meio de um parque abandonado, sem portões, cheio de lixo, praticamente um terreno baldio. Um parque cheio de mato com espinhos que eu tenho que atravessar. Tudo é meio seco, meus passos quebram os pequenos caules. A luz do Sol ainda é forte demais, apesar de ser fim de tarde, e por isso tenho que me mexer com os olhos quase fechados, evitando o clarão no meu rosto. Não há placas, indicações. Não vejo ninguém por perto. Este lugar que nem é descrito no meu guia.

Mas não tardo em ver o ex-herói. Seu imenso perfil à distância, cobrindo um pouco dos raios ofuscantes.

A poeira trazida pelo vento me faz fechar completamente os olhos por um instante, mas continuo andando. Quando os abro de novo, vejo com nitidez, à minha frente, as feições familiares: careca, bigode, expressão corporal de desafio, de lutador. Vinte e dois metros de altura, feita de metal claro, brilhante. Uma magnífica estátua de Lênin, sobrevivente em Khojand pouco mais de 20 anos após o fim do Comunismo.

Trata-se da maior estátua do líder soviético que ainda resiste nos países da ex-URSS na Ásia Central, tendo sido trazida de Moscou para cá em 1974. Tirando o fato de que foi isolada neste parque (colocada cuidadosamente de pé e não jogada de qualquer forma, o que certamente quer dizer algo), ela se mantém gloriosa como se tivesse sido inaugurada ontem, refletindo os raios de Sol, prateada e ofuscante. Seus traços são estilizados, linhas retas no rosto e no corpo, aquele eco de modernidade antiga, de vanguarda soviética hoje desacreditada, congelada no passado como uma promessa eterna.

Apesar de a estátua já existir há mais de vinte anos sem o zelo do PC, o triste destino do Lênin de Khojand é algo relativamente novo. De acordo com meu guia, publicado em 2010, a estátua naquela época não estava aqui, onde quase ninguém a encontra. Estava antes em cima de uma pequena colina, em um local nobre e grandioso perto do rio, e era visível de boa parte da cidade. Voltando do meu encontro com o camarada metálico em seu atual chiqueiro, passeio pelo seu antigo lar, que não fica muito longe do atual.

Em seu lugar, o presidente Emomali Rakhmon colocou uma outra estátua, igualmente colossal. É de Ismail Samani, o fundador da obscura dinastia persa que dominou a Ásia Central durante os séculos IX e X. Hoje, Samani, uma figura desconhecida para boa parte dos Ocidentais, é quiçá o símbolo maior deste jovem país, que fala uma variedade da língua falada no Irã e se orgulha de sua ancestralidade persa. Sobre os ombros desta figura resgatada das sombras dos séculos reside o sentido desta nação inteira. Reside uma explicação, uma raiz comum para o Tajiquistão. Uma tentativa de identidade. Como Tamerlão, no Uzbequistão, como Manas, no Quirguistão. A mesma estratégia.

Ao redor da gigante representação de Samani, um lindo conjunto de imagens. Escadarias com mosaicos, vários, cada um contando um momento da história do Tajiquistão. Vejo o mosaico que talvez seja o mais importante deles, o que diz mais sobre o país e a triste realidade dos vizinhos que se odeiam. Ele mostra o mausoléu de Samani, um prédio cúbico antigo, lindo, de tijolos desgastados pelo tempo e ar misterioso. O mausoléu do herói tajique, por ironia, está no Uzbequistão - em Bukhara, onde é apenas mais uma joia arquitetônica, onde é até esquecido, afastado da Labi-Haus, da Mir-i-Arab e da Ark. Fica em Bukhara porque esta era a capital de Samani. Assim, pelo que diz a história, Bukhara é muito mais persa do que Khojand, que por sua vez é um pedaço do uzbeque Vale de Fergana. Quanta criatividade, cruel, a dos cartógrafos soviéticos. Os tajiques, agora independentes, tendo que se contentar em ver seu monumento maior à distância, em outro país.

É triste, lamentável que estas duas nações, Uzbequistão e Tajiquistão, tenham sido separadas pelas fronteiras e pelas desavenças de seus líderes. Uzbeques e tajiques, em última análise, são os dois lados de uma mesma moeda. Estão por toda parte, misturados. Historiadores falam de uma relação simbiótica que se desenvolvem durante os séculos entre a população de origem persa - trazida para cá pelo império de Ciro e por Alexandre o Grande - e os povos turcos que viriam a seguir. Os turcos, guerreiros, nômades, livres; os persas, ocupando os oásis, ocupando-se do comércio e o artesanato em uma vida sedentária. Os tajiques são os descentes destes, os uzbeques, dos anteriores. Separá-los é tentar fazer uma cirurgia em que se espera separar o coração do corpo sem esperar que o coração pare de bater.

No museu de história local de Khojand, mais uma manifestação do apreço dos líderes da Ásia Central por reescrever o passado. Evidentemente, os heróis nacionais ganham imenso destaque - usando artifícios fantasiosos. Vejo um retrato colorido de Ismail Samani na parede. Lembro da estátua que vi em praça pública. De onde tiram tantos detalhes das feições de um sujeito que morreu há mais de mil anos, no ano 907? Me fez dar risadas o fato de que o domínio de toda a região por Tamerlão recebe tão pouco destaque no museu, passa tão rapidamente, como se não tivesse grande importância (historiadores ligados ao governo uzbeque certamente discordam disso). Também aparecem pouco no acervo permanente do museu objetos e relatos sobre a trágica guerra civil tajique, reduzida a uma ou duas fotos. Melhor esquecer o conflito?

Por outro lado, o "pai da pátria" Rakhmon aparece em dezenas de fotos e, no final, ganha espaço em um quadro que mostra o panteão dos heróis nacionais, encabeçado por Samani. O título de herói nacional já foi concedido ao atual presidente pelo Parlamento. O país está nas excelentes mãos do herói nacional, que, é claro, não comete erros.

Não obstante, se por acaso algum não-erro gerar a ira dos moradores de khojand, o exército está à disposição. O museu fica dentro de uma cidadela erguida no século X, restaurada depois, e que a instituição divide com um quartel do exército, bastante ativo. Pareceu à autoridades tajiques algo natural reaproveitar a fortaleza ancestral em vez de transformá-la, inteira, em um museu, preservando o que nela existir de original. Por aqui, acredita-se, ficava o assentamento erguido por Alexandre, o Grande, Alexandria Eschate. A cidadela-quartel-museu é o que mais presente a cidade tem de Alexandre. Há mapas indicando onde estariam as fronteiras da cidade do conquistador macedônico, contrapondo-as com as da fortaleza dos anos 900. Por isso, fantasiei explorar a pé cada centímetro dela.

Impossível. Com os soldados empunhando armas em metade do espaço, os fantasmas de Alexandre ficam fora do alcance dos turistas. Partes do lugar só podem ser vistas à distância, e, mesmo assim, com os soldados olhando de volta, ressabiados, com caras de poucos amigos.


* * *

A segunda noite no confortável quarto no hotel Eksaun foi de puro terror psicológico. Tenho certeza que, por muito tempo, vou ter pesadelos lembrando dessa madrugada em Khojand. Momentos de imenso pavor. O coração me arrancando da cama batendo com tal velocidade que eu pensei que iria pular do meu corpo e apanhar o primeiro avião de volta para o Brasil. Momentos que não desejaria nem ao meu pior inimigo.

Tudo começou na manhã seguinte à primeira noite no hotel. Ao acordar, decidi ficar mais um dia na cidade, não só porque ela me pareceu bonita e com mais coisas para explorar, como também porque estava sentindo os efeitos da gripe que peguei em Isfara, um pouco de febre e cansaço incomum. Fui ao guichê da recepção e, depois de uma fila de dez minutos, pedi uma noite extra no quarto e paguei por ela. Não é algo muito difícil de combinar em russo. Tenho certeza de que a senhora de grossos óculos entendeu perfeitamente o que eu queria. Ela inclusive me deu um recibo e um vale para o café da manhã do dia seguinte.

Ao chegar ao quarto de noite, com os pés doendo de tanta caminhada e a maldita dor de cabeça, tomei um banho, e assisti um pouco de TV. No meu andar, os quartos vizinhos estavam todos ocupados e eles faziam barulho eventual, acima de tudo conversando em voz alta e arrastando móveis. Na reta final do noticiário, com os meus olhos quase se fechando, alguém bate à porta.

Uma regra que sempre sigo em viagens que faço sozinho é jamais, em hipótese alguma, abrir a porta ou sequer responder a alguém que esteja batendo à porta do meu quarto em hotéis. Estranhamente é algo que aprendi viajando pelos Estados Unidos, um país muito mais fácil para os viajantes. Uma vez, em um motel de beira de estrada em Savannah, Geórgia, às 3h da manhã, alguém começou a bater à minha porta forte e insistentemente. Decidi não abrir. No dia seguinte, a própria recepcionista me disse que eu havia feito certo, pois era provavelmente um assaltante que havia visto meu carro parado na vaga em frente ao quarto.

Mesmo me sentindo seguro dentro do quarto, meu coração bateu mais forte. Evidentemente, é extremamente desconfortável saber que você é o alvo de alguém, que alguém quer ter acesso ao seu quarto, quer te ver, por algum motivo, sem que provavelmente eu possa me comunicar com essa pessoa normalmente, por causa da minha falta de habilidade com a língua. Um minuto de batidas insistentes se passou, o silêncio voltou. Respirei aliviado.

Apaguei a luz, coloquei-me embaixo das cobertas. No quarto abandonado ao lado do meu, conseguia sentir o vento entrando pela janela quebrada e levantando a cortina em farrapos. A cortina levantada assumia quase que o formato de um corpo, como se alguém estivesse escondido atrás dela. A febre estava começando a piorar. Tomei um analgésico e tentei não olhar para aquela janela. Deviam ser uma 21h30 da noite.

O analgésico me derrubou, mas aproximadamente uma hora depois praticamente pulei para fora da cama. Novamente batiam à porta - desta vez, com muito mais vigor. Sequências de três batidas fortes, às vezes quatro, com pequenas pausas. As batidas ressoavam em todas as paredes. Eu não sabia o que estava acontecendo, não estava conseguindo pensar direito por causa da febre e do sono, só sentia meu coração batendo cada vez mais rápido e um medo que só aumentava. O que fazer? Eles vão invadir meu quarto! O que foi que eu fiz? O que posso fazer? Nada, nada, não faça nada - essa era a única estratégia em minha cabeça. Encostei-me na parede fria, olhando para a porta balançando com as batidas. À direita, meu quarto continuava sendo invadido pelo fantasma na cortina do quarto abandonado.

As batidas demoraram mais desta vez, mas no final desapareceram. O alívio não foi tão grande. Eu já sabia que, se bateram duas vezes, iriam bater três, quatro. Até imaginava que pudesse ser algo importante, mas não poderia saber ao certo. Vindo dos quartos vizinhos, ainda ouvia ruídos difusos, agora menos conversa e móveis arrastados e mais televisão. Não poderia ser um incêndio, não era uma emergência. Na minha cabeça, se era alguém do hotel e não era emergência, qualquer coisa poderia ser resolvida no dia seguinte. Por que eles insistiriam tanto em falar com um hóspede que pagou a sua noite antecipadamente?

Permaneci de pé olhando a porta mais 15 minutos, depois cedi, me deitando novamente. Os olhos não fechavam. Senti uma gota de suor nascendo na minha testa. A cama parecia de espinhos.

A terceira sequência de batidas à porta foi obviamente a pior. Fortes, contínuas, cerca de meia hora depois. Eu não havia chegado a dormir. O coração batia forte demais. Me coloquei novamente colado à parede, olhando a porta balançando. Não parava. De repente, ouvi o que parecia ser alguma ferramenta tocando a fechadura, metal com metal. Entrando, saindo. Estão tentando arrombar a porta.

Agarro um abajur. O tiro da tomada. O seguro como um bastão de beisebol. Me preparo. A porta se abre com violência.

Deve ter sido uma visão patética para a funcionária do hotel me ver de pijama agarrando um pequeno vaso de porcelana com uma lâmpada como se fosse uma arma, quase chorando, trêmulo. Imaginei que ela fosse se aproximar de mim de forma agressiva. Mas acho que ela ficou com pena ao me ver assim, ou envergonhada por ter que invadir meu quarto. Permaneceu à distância, pediu desculpas.

Meu russo praticamente desapareceu nessa hora. Ela me dirigiu a palavra, fez inúmeras perguntas. Não entendi nada. Só consegui perguntar se ela falava inglês. Não falava. Ela me indicou que viesse atrás dela, que a deixasse sair e fechasse a porta. Foi o que fiz. Sabia que aquilo não ficaria assim. Cinco minutos depois, ela bate novamente, de forma mais calma, e junto com ela apareceu um senhor idoso de fala mansa, que igualmente não falava inglês.

Agora que eu estava mais calmo, entendi melhor. Havia ocorrido uma falha de comunicação entre a moça da manhã, a quem paguei o segundo pernoite, e ela. Ninguém a havia avisado que eu ficaria mais uma noite. Assim, ela não sabia se o quarto estava ocupado ou não, se poderia dá-lo a outro hóspede. O senhor me perguntou se eu havia pago. Eu lhe mostrei o comprovante do café da manhã, disse que sim. Eles rapidamente se deram conta de que eu não tinha culpa de nada. Nesse momento, eu ainda estava trêmulo, com os olhos arregalados, molhado de suor, com sono e febre, ainda sem conseguir falar direito. Eu repetia em russo "eu paguei, eu paguei, ok, ok", era a única coisa que conseguia falar. A mulher se desculpou, me desejou boa noite. Indiquei que não estava bravo, apenas queria dormir, e eles finalmente se foram. Tranquei aquela maldita porta pela derradeira vez.

Me atirei na cama. Nenhum fantasma de vento no quarto ao lado me tiraria as restantes horas de descanso.

Istaravshan, 20/9, 19h

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