Sunday 10 December 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XXI): Kokand

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Este texto faz referência a minha visita anterior ao Vale de Fergana, descrita no capítulo X de Um Brasileiro no Uzbequistão (2003); relembre aqui

Este texto foi escrito antes da morte do ditador uzbeque Islam Karimov, em setembro de 2016.

15/9/2012

Sua capital é Kokand, ou Kokand-i-Latif ("Encantadora Kokand"), como é conhecida pelos nativos. Ela fica em um lindo vale e é em circunferência seis vezes maior que Khiva, três vezes maior que Bukhara e quatro vezes maior que Teerã.
- Arminius Vámbéry, Travels in Central Asia, 1864

Kokand. Fica no Vale de Fergana, na ponta leste do Uzbequistão, uma região que é tradicionalmente associada ao Islã mais conservador. Em minha viagem em 2003, havia muitas mulheres com o véu islâmico na rua. Fiquei com um gosto meio amargo na boca ao sair do Vale daquela vez: visitei na cidadezinha de Margilan uma inesquecível fábrica de artigos de seda e um impressionante mercado. Mas a segunda parada daquela visita, em Namangan, foi uma tristeza. Pouco vi na cidade, fiquei perdido, me senti deslocado. Na ocasião, na volta, a caminho de Tashkent após Namangan, parei por pouquíssimo tempo em Kokand, vi muito rapidamente o palácio e peguei o táxi para a capital. Precisava voltar, ver direito. Cá estou.

O palácio é o do antigo rei local, o khan. Kokand foi a capital do khanato do mesmo nome, um país independente entre os séculos XVIII e XIX, quando foi anexado pelo Império Russo. Era um dos três paisinhos da região (além de Kokand, havia o khanato e depois emirado de Bukhara e o khanato de Khiva) que sob a URSS se uniriam para formar o Uzbequistão. O khanato de Kokand foi o país que por último se formou, tendo se separado dos domínios de Bukhara em 1709, e o primeiro que caiu ao avanço formidável do imperialismo russo, que o transformou em um protetorado em 1868 - apenas quatro anos depois da visita de Arminius Vámbéry.

Kokand sempre foi um reino frágil, isolado, viável apenas por ficar em uma área de terras extremamente férteis próxima de vastos desertos e altíssimas montanhas. A fragilidade e o isolamento se davam também por causa dos poderosos vizinhos - ao norte, os russos, a leste, a China - e do igualmente fraco emirado de Bukhara, a oeste, que mantinha o desejo de reanexação do território. Logo no início, no final do século XVIII, Kokand se transformou por um breve período em um protetorado da dinastia Qing, chinesa. Depois, se libertou e até conseguiu se expandir, tomando Tashkent e Khojand (uma importante cidade no Vale de Fergana, mas no Tajiquistão). No Grande Jogo, foi o ponto de parada de Connolly antes de sua fatídica jornada para tentar salvar Stoddart em Bukhara. Em Kokand, Connolly havia tentado obter apoio do khan contra os russos. Mas o khan tinha problemas mais próximos para resolver com o seu vizinho de Bukhara, que o invadiu em 1842, assassinando o monarca. Os russos foram tomando territórios para si - Tashkent caiu em 1865, Khojand, em 1867. Veio a vassalização do pequeno reino pelo czar, permitindo que o então khan, Khudayar, terminasse de construir seu lindo palácio. Foi um período de extrema turbulência, em que o impopular monarca foi afastado do poder e voltou quatro vezes, só sobrevivendo justamente por sua aliança com os russos. Em 1875, quando o filho de Khudayar ascendeu ao trono em Kokand, ele adotou uma postura contrária à dominação dos estrangeiros, como se ele tivesse alguma escolha. Em 1883, São Petersburgo por fim anexa o khanato, e o último monarca foge para a Índia.

Não obstante, o povo de Kokand foi, quiçá, o que mais tempo permaneceu ativamente resistindo à dominação dos bolcheviques. Em dezembro de 1917, ainda na sombra dos eventos monumentais do mês anterior em São Petersburgo, aqui foi feita uma declaração de independência, surgindo uma administração para os nativos do Turquestão, fortemente influenciada por motivos religiosos - foi uma reação aos infiéis invasores e a sua arrogância ao lidar com as demandas muçulmanas. A resposta bolchevique foi rápida: em fevereiro do ano seguinte.

Percebendo que este era um sério desafio a sua própria reivindicação de controle nos ex-territórios czaristas, os bolcheviques de Tashkent imediatamente denunciaram o governo de Kokand como contrarrevolucionário e declararam guerra a ele. Eles então reuniram a unidade mais forte que puderam, incluindo muitos ex-prisioneiros de guerra (da Primeira Guerra Mundial), e cercaram a cidade velha (...) O número de muçulmanos sacrificados é colocado por historiadores em algo entre 5 mil e 14 mil. Estupros e saques ocorreram em uma escala aterrorizante contra um povo incapaz de se proteger sozinho. Casas, mesquitas e caravançarais foram queimados ou vandalizados nesta outrora próspera cidade produtora de algodão. Claramente a coisa toda saiu de controle (...)
- Peter Hopkirk, Setting the East Ablaze: Lenin's Dream of an Empire in Asia

A truculência irresponsável plantou uma semente. Opositores sobreviveram, mantiveram a revolta nos anos seguintes e reagiram durante a guerra civil que se seguiu no futuro território soviético. Esse movimento de resistência, chamado de movimento basmachi, chegaria, por exemplo, a ter cerca de 16 mil homens e a tomar áreas da nascente república soviética de Bukhara, de Fayzullah Khojaev (o da casa que visitei em Bukhara). Os bolcheviques redobraram seus esforços, retomaram os territórios, mas guerrilheiros novamente escaparam, desta vez, para remotos cantos dos atuais Tajiquistão e Afeganistão. Entrincheirados nas cavernas, ocultos nas florestas, eles sobreviveram para atormentar Stálin até os anos 30, quando os últimos focos rebeldes foram eliminados.

Ou não. O movimento teria sobrevivido até... hoje. Historiadores atribuem aos basmachis a origem dos Mujahedin que depois resistiriam aos soviéticos na Guerra do Afeganistão (1979-1989) usando táticas semelhantes e, posteriormente, viriam a dar origem ao Talibã. Logo influenciaram os jihadistas em outros confrontos que lembramos bem, como os na Chechênia, na Somália, na Síria.

E o símbolo mais visível dessa resistência, desse orgulho, é o palácio, chamado de "pérola de Kokand".

Foi inaugurado por Khudayar Khan em 1873. Extensivamente restaurada, parcialmente destruída e reconstruída, a edificação, apesar de tudo, ainda tem algo que remete a um passado selvagem, distante. Cerca de metade dela, salas e salas e salas, era ocupada pelo harém, e esta parte foi sem cerimônia reduzida a escombros pelos bolcheviques. Permanecem de pé 27 aposentos. Atravesso as salas, visito um pátio interno. Colunas de madeira esculpidas por artesãos sustentam o teto ao redor do pátio. As paredes apresentam intrincados padrões geométricos e caligrafia árabe. Mas nada supera a beleza da fachada, com seu familiar azul timurida, o azul que une este país há séculos. Apesar de tanta reconstrução e reinvenção.


* * *

Minha volta a Kokand foi a confirmação de minhas teorias a respeito de Karimov. Esperava encontrar por aqui mais ecos desse passado de forma mais clara, encontrar aqui mais muçulmanos visivelmente conservadores, um lugar de orgulho onde tudo que era ainda está presente. Queria ter aqui uma daquelas ansiadas viagens no tempo, procurando o espírito centro-asiático que ainda existe, como no meu encontro com Lutfollah em Shakhrisabz, ou no mausoléu de Aisha Bibi em Taraz. Afinal, este é o Vale de Fergana, o coração pulsante dos uzbeques. Um verdejante paraíso verde, fértil, cercado de montanhas por todos os lados.

Não foi isso com que me deparei, evidentemente.

Meu hotel, também chamado Kokand e um dos principais da pequena cidade, fica a 500 metros do histórico palácio. Chega-se a ele por uma rua chamada Istiqlol. A impressão que tive foi que a rua foi recentemente "embelezada" - de novo, o que vi em Samarkand e Tashkent. O resultado final parece conduzir o visitante para uma cidade americana (veja o vídeo abaixo). A fiação foi enterrada, os postes são lindos e tudo é esteticamente 100% ocidental. Bonito, claro, mas onde está Fergana? Já morei em Miami. Parecia que eu estava lá.



Também saindo do meu hotel, outra avenida leva até a estação ferroviária da cidade. Nessa avenida, me alivio ao encontrar inúmeros prédios mais antigos. Eles são a marca do czar - construídos antes da Revolução de Fevereiro de 1917, reformados e sobreviventes - ou dos bolcheviques. Entretanto, em algumas fachadas, eles trazem também a marca do mundo globalizado atual - logotipos conhecidos do exterior, acenando para os turistas, chamando-os para suas lojas nos mesmos prédios. Logotipos de marcas como Armani, Dolce & Gabanna, Nescafé. Referências muito distantes deste lugar, falando de produtos caros, inalcançáveis para a população pobre que toma a cidade. Difícil imaginar que muitos uzbeques de Kokand tenham poder aquisitivo para comprar um terno Armani. E Nescafé... as pessoas por aqui costumam tomar chá, não café. Não lembro de logotipos exibidos de forma tão chamativa e chocante em Bukhara ou Samarkand.

A ocidentalização é geral e evidente neste que deveria ser um bastião das tradições uzbeques. Neste preguiçoso sábado à tarde, as pessoas desfilam com jeans, camisas ou camisetas. Como eu me vestiria em São Paulo ou em Londres. As observo - muitas parecem tão à vontade neste ambiente, como se estivessem gratas pela linda cidade americana que receberam. E eis que, de repente, uma "anomalia" surge. Como se fosse um pouco da poeira varrida para debaixo do tapete que aparecesse, estragando a limpeza da sala. São três mulheres, todas vestidas com uma roupa de seda colorida e com véus cobrindo o rosto. Cruzam meu passo bem devagar, conversando baixinho. Suspiro de alívio. Lembro de Margilan, logo aqui ao lado.

Karimov persegue o modelo urbano do Ocidente bem mais que o Cazaquistão - que me pareceu seguir um modelo por vezes bizarro que está na cabeça de Nazarbayev, não uma cópia descarada de alguma cidade dos EUA. Isso está claro na língua também. Em Kokand, o inglês é tão comum nas placas quanto o russo. Encontrei gente jovem falando russo além de uzbeque, mas também falando melhor inglês que russo. No Cazaquistão, com tanto o russo quanto o cazaque tendo status de línguas oficiais, o russo ainda é mais presente que o inglês como segunda língua. Em algumas regiões, ainda seria inclusive a primeira língua (isso dizem sobre o norte, perto da fronteira russa, que ainda quero visitar). Tal divisão entre a língua local e o russo não é mais evidente no Uzbequistão, onde o russo não tem nenhum status, onde o alfabeto cirílico continua desaparecendo, onde milhares de turistas ocidentais realizam invasões por semana. Claro que a lei local e a indústria do turismo tornam naturalmente o inglês mais presente e impulsiona a "higienização". Mas o russo, por mais que seja herança do colonialismo, é parte da história desta terra. Troca-se um colonialismo por outro como se o atual fosse melhor que o anterior. Mas o anterior, por ser parte da história, é também uma parte da identidade local.

Ainda que ruas sejam limpas e lindas, nesse novo mundo uzbeque há uma tristeza no ar. Uma nostalgia. Um silencioso lamento nos passos de algumas pessoas, caminhando como se não fossem elas próprias. Em terras que foram só delas e hoje são e não são. Cada vez mais deixam de ser.


* * *

O Vale de Fergana, por sua efervescência islamista nos anos 90 e 2000, continua submetido a regras especiais de segurança. Na estrada, como estrangeiro, tive que me registrar num posto de controle militar antes de entrar na região. Não há ônibus de Tashkent a Fergana. O trem, demora muito. Sem essa concorrência, taxistas e motoristas de lotações que fazem a ligação podem faturar com tarifas altas - e não deixam de fazê-lo.

De Shakhrisabz a Tashkent, uma viagem longa, foram 40 mil sums (aproximadamente US$ 10). De Tashkent a Kokand, esperava pagar menos, pois o trajeto é menor. Trata-se de pura lógica. Mas quando comecei a discutir preços para a viagem até Kokand com os taxistas, às 11 da manhã, o primeiro me veio pedindo 120 mil sums (US$ 35). Dei uma risada. E o que se seguiu, num mercado na periferia da capital uzbeque, foi a mais dura negociação com taxistas que já tive até hoje na Ásia Central. O Sol já apontava o meio-dia quando eu consegui um motorista que pediu 30 mil sums, o que me pareceu o preço correto.

Fiquei amigo do motorista e dos outros dois viajantes dividindo o carro comigo. Durante todo o caminho, fui contando minhas histórias de viajante e de brasileiro, produzindo risadas, rindo junto. Não enjoei no caminho (como acontecera de forma inesquecível na minha primeira viagem ao Vale de Fergana em 2003), o tempo estava ótimo, não estava calor nem frio. O carro atravessou as montanhas e adentrou a planície verdejante de plantações, circundada de serras, uma verdadeira Shangri-lá. Me senti bem-vindo.

Mas pouco tempo antes de chegar a Kokand, a atmosfera dentro do carro mudou radicalmente. O motorista insistiu que o preço que tinha sido acertado comigo era 35 mil. Me mantive firme. Ele praguejou - juro que pensei que ele fosse me soltar no meio da estrada. Ele insistia, aos berros, que queria os 35 mil. Meu amigo de caminho, meu amargo inimigo do final da jornada. Xingou mais, gritou mais, mas me deixou no hotel que eu havia pedido. Agarrou o dinheiro e saiu voando com o carro. Fiquei pensando se eu não deveria ter cedido, afinal, 5 mil sums não é nada. Mas não. Muitos no Uzbequistão pensam que turistas são bobos e sempre cheios de dinheiro. Eu não vou compactuar com isso e deixar que me enganem, nem ser intimidado. Se fizer isso, prejudico todos os viajantes que vierem depois de mim.

A "inflação de Fergana" se refletiu também no preço dos hotéis em Kokand. Eu já sabia que teria alguma dificuldade em encontrar acomodação por US$ 15 como em Bukhara, por exemplo. O hotel onde o taxista me deixou, recomendado pelo meu guia, cobrava US$ 24, era longe do centro e, para piorar, estava lotado. Peguei um ônibus urbano e fui testar minha sorte bem no centro.

Lá encontrei o velho hotel Kokand, conhecido por todos na cidade. Estava sendo reformado, na linha do projeto higienista karimoviano. Espantosamente, consegui nele um quarto imenso, com cama de casal, por US$ 15 e café da manhã incluído. Obviamente, havia problemas - recentemente renovado, o quarto que me deram não tinha nenhum móvel, exceto a cama, e o banheiro, embora com chuveiro quente, não tinha pia. Pelo jeito, a reforma no quarto ainda não tinha terminado. Ignorei os problemas. Pensei em meu suplício no hotel em Shymkent e ergui meus braços aos céus em agradecimento.

Estranhamente para uma cidade que parece adaptada para o turismo, não encontrei opções de locais para comer algo. Jantei na avenida entre o hotel e a estação ferroviária, em frente a um velho prédio provavelmente czarista, reformado, vermelho. Não tive sorte na minha escolha. Mastiguei um churrasco grego vagabundo que me custou caro. Fui dormir com fome.

Kokand, 16/9, 9h24

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