Sunday 12 November 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (XIII): Turkistan



Clique aqui para ler o capítulo anterior
Clique aqui para ver um mapa com o itinerário da viagem
Clique aqui para ver mais fotos desta etapa da viagem

7/9/2012

Como é bom ter tempo.

Seis e meia da manhã. Os primeiros raios de Sol incidem sobre a fachada do mausoléu de Khoja Ahmed Yassawi, e os pássaros festejam com sua algazarra. Estão dentro dos buracos na parede ou empoleirados nos troncos ainda enfiados nos tijolos desde o tempo que eram usados na construção do edifício, nos séculos XIV e XV. Mais e mais chegam voando. Outros, muitos, alçam voo para buscar o café da manhã.

É muito alto o barulho que as aves fazem. Parece o ruído de um estádio de futebol cheio de torcedores, mas, neste caso, torcedores de penas. É uma mistura de pios, um caos sonoro. Uma delícia de escutar.

A glória de um amanhecer dourado. Com tempo.

Umas poucas pessoas testemunham a aurora como eu. Elas passam de lá para cá, de cá para lá. Algumas entram no prédio de Yassawi. Faz um friozinho sem vento e, pela primeira vez nesta viagem, coloco um casaco.

Que luz linda. Manifestação de Deus. A fachada despida de Tamerlão é ainda mais impressionante iluminada pela manhã. Falta algo? Faltam os azulejos, mas o tempo fez com que esta simplicidade também fizesse todo sentido e, talvez, tornasse toda a obra ainda mais inesquecível, ainda mais única. Uma obra oculta, que só pode ser vista de verdade indo além dos olhos.

Após a morte de Yassawi em 1166, um pequeno mausoléu foi construído para ele por aqui. A cidade não sofreu a dor e a destruição que outras sofreram quando vieram os mongóis, no século XIII, e o local continuou atraindo fiéis durante todo o período até a chegada de Tamerlão, que determinou a construção deste mausoléu atual. Os trabalhos começaram em 1389. Tamerlão costumava trazer para fazer grandes obras em suas cidades favoritas artesãos dos locais que conquistava, e assim vieram grandes talentos da Pérsia para criar os mosaicos e azulejos da nova edificação. A morte de Tamerlão em 1405 paralisou os trabalhos, mas posteriormente partes do prédio ainda foram feitas, muitos anos depois da estrutura original. Isso explica a disparidade visível no gigantesco pórtico. Muitos tijolos usados na fachada são de um tamanho completamente diferente dos demais, por exemplo. As torres laterais da fachada lembram torres de castelos da Inglaterra, não me parecem torres timuridas. Entretanto, mesmo com as diferenças, não parece que nada está muito deslocado do conjunto. É um todo compacto, sublime.

O que ainda não sei é como é ele por dentro. E me preparo agora para adentrá-lo. Admito que estou nervoso, antecipando o mistério de paredes semiconstruídas, câmaras escuras, cheiro de pedra e deserto.

O local foi tombado pela Unesco em 2003, considerado patrimônio da humanidade. No momento, ele vem sendo restaurado. Ao redor de sua cúpula azul principal, os andaimes de metal indicam que esse trabalho está a todo vapor. Por isso, ao entrar, esperava algum restauro ocorrendo no interior.

Após uma pequena câmara de chegada (onde as mulheres são obrigadas a colocar um véu), vem a escura câmara de uns 18 metros de altura logo abaixo da grande cúpula. Ela está em parte tomada pelas barras metálicas que ajudam os restauradores a alcançar as alturas. Elas vão do chão ao teto. Por entre as barras, no chão, iluminado, há um tesouro, um esplendoroso caldeirão de bronze de duas toneladas, todo decorado com inscrições em árabe e altos-relevos, presente do próprio Tamerlão. O cadeirão impressiona, como tudo que é timurida, pelo tamanho, pelo capricho, pela leveza.

Mas, tirando o caldeirão, o resto da grande sala me entristeceu. Dá para ver nas partes já restauradas que todas as paredes foram pintadas de branco. Detalhes do teto perto da cúpula, entradas e saliências intrincadas, que um dia imagino que tenham tido cores ou ao menos o tom familiar dos tijolos, estão brancos. Duvido muito que essa tenha tido a aparência original do salão - ou o que Tamerlão esperava ver, já que certamente partes do interior não devem ter sido concluídas com ele ainda vivo.

Outras salas do complexo, mais à frente - e há mais de 30 delas, uma com uma pequena mesquita, outra com um poço - também estão com as paredes brancas. Não inteiras - a parte mais abaixo é de tijolos. Porém, mais para cima nas mesmas paredes, a cerca de um metro do chão, os restauradores deixaram uma nova superfície com o que parece ser concreto pintado de branco. Procuro o espírito medieval do mausoléu e não encontro nessas paredes. Este lugar por dentro parece um museu, parece um hospital, parece outra coisa, mas não um mausoléu timurida. Isso se repete até na mais sagrada sala do complexo - onde está a tumba de Khoja Ahmed Yassawi. A tumba, em si, é belíssima - coberta com um pano de veludo verde com inscrições árabes em amarelo -, colocada por sobre um alto pedestal de mármore verde. Mas as paredes brancas destoam.

São os detalhes não brancos deste universo que me hipnotizam. O caldeirão verde, a tumba, todo o exterior com suas cúpulas azuis e a porta de madeira trabalhada que leva à tumba. Uma porta esculpida centímetro por centímetro, inscrições, desenhos. Uma devoção que comove e que confirma a glória real do mausoléu.


* * *

À tarde, honrando meu espírito atual de relaxar e viajar, e não apenas conhecer o maior número de lugares com o tempo que tenho, vou preguiçosamente ao museu regional, que fica em um bonito prédio moderno ao lado do mausoléu. O museu conta a história desta região do Cazaquistão desde a pré-história até os dias atuais, mostrando relíquias arqueológicas, impressões artísticas e recriações de cenários de momentos-chave da história, além de fotos. Antropologia, etnografia. Vi como seria uma casa cazaque em séculos passados, o salão do trono de um monarca local, um khan. Seria um museu bem mais interessante se não fosse um detalhe: tudo, absolutamente tudo é escrito em cazaque. Apenas em cazaque.

Isso me surpreendeu. Me parece lógico que principalmente turistas visitem este museu ao lado de um ponto tão turístico, e turistas muitas vezes não conhecem a língua local. Mas sequer em russo há informações à vista. Por outro lado, esse fato combina com o que se vê entre a população local. Eu diria com segurança que 90% das pessoas que encontrei em Turkistan não sabem mais que o básico de russo, como eu, e que talvez apenas 5% saibam muito bem a língua-franca da antiga URSS. Eu esperava, contudo, ver mais jovens falando inglês, para se integrar com o mundo, ter mais acesso à cultura ocidental que os fascina. Mas também não vi muitos sinais disso em Turkistan. Encontrei com apenas um jovem falando inglês na cidade - um funcionário do museu que, me vendo perdido com as placas em cazaque, veio me saudar.

Com simpatia, ele se dispôs, sem pedir dinheiro, a me explicar todo o conteúdo do museu na língua de Shakespeare. Pobre rapaz. Deve ficar exausto de falar inglês quando há excursões de turistas estrangeiros. Faço a ele a pergunta inevitável - por que diabos não há nada escrito em inglês ou russo no museu? Resposta simples: "Nosso diretor não gosta da ideia". Ficam sem respostas todas as perguntas que fiz a seguir, todas lógicas: Então o diretor acha que, porque aqui é o Cazaquistão, todos devem falar apenas cazaque? Ele acha que não vale a pena o investimento de colocar informações em outras línguas? Ele acha que este museu é voltado apenas para a população local? Todas explicações do jovem funcionário são vagas, fugindo do assunto. Não insisti, senti que estava colocando-o em uma situação desconfortável. Talvez o motivo seja muito mais banal, talvez, simplesmente não há dinheiro para isso. Mas o museu, tão moderno e reluzente, sugere que dinheiro é o que não falta. E o museu que visitei em Shymkent, mais velho e menos cuidado, tem pelo menos algumas informações básicas em inglês. Difícil entender.

O nível de inglês do funcionário não é excelente, mas bastante satisfatório. E, com sua ajuda, posso aproveitar bem a visita. O que me chama mais a atenção é o que está em exibição no terceiro e último andar. É o andar dedicado ao presente e futuro de Turkistan. Segundo os planos mirabolantes do presidente Nursultan Nazarbayev, um grande projeto de construção vai ser iniciado na cidade. Grande, mas melhor chamá-lo, para ser mais preciso, de faraônico. Bairros inteiros serão remodelados, prédios moderníssimos com cúpulas azuis serão erguidos, jardins e fontes serão criados. Uma tremenda transformação para uma cidade hoje de ruas mal asfaltadas, casas antigas e em muitos casos sem manutenção, meio esquecidas, envelhecidas, tomadas pela poeira e pelo Sol. O próprio guia do museu, explicando o projeto, repetiu três vezes que a construção começaria em 2013. Como se tentando, ele mesmo, se convencer de que aquilo tudo pode ser realidade no futuro.

No fim da tarde, contemplo novamente o mausoléu de Yassawi. À distância, novamente, o Sol dourado. Fico nostálgico. Tomara que tudo aqui não mude muito. Que, ao redor do mausoléu, exista para sempre um vasto terreno com misteriosas elevações de terra com ruínas e tesouro nunca descobertos. Mesmo se de fato não existirem, eles existem enquanto o mistério for mantido. Se vier uma motoniveladora e forem feitos cinco prédios de dez andares, será como São Paulo: a alma desta terra vai se perder.

Vai só ficar concreto, possivelmente pintado de branco.

Turkistan, 8/9, 16h58

Clique aqui para ler o próximo capítulo






.

No comments:

Post a Comment