Tuesday 17 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (VI): Almaty

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31/8/2012

Como em São Paulo, velhas fachadas descuidadas de prédios passam despercebidas para os moradores da cidade no dia a dia - mas, para um estrangeiro, é mais fácil perceber essas sutilezas, as joias em meio ao concreto. Perto do Parque Gorki, ao leste do centro da cidade, lá estão elas. Algumas fachadas lembram as que eu vi na velha Verni (nome antigo de Almaty, dos tempos do império russo) em abril: janelas de madeira coloridas, frisos de madeira orlando o teto como se fossem bordados de crochê em uma toalha de mesa, com padrões geométricos exóticos. Outras fachadas são gemas soviéticas com a personalidade centro-asiática: os caixotes de concreto com as janelas e balcões trabalhados, ferragens e grades de grande capricho. De vez em quando, um prédio maior, com o detalhe oriental na fachada que faz toda a diferença. Algumas fachadas estão morrendo, tão mal cuidadas que estão; aguardam, agonizando, algum restauro. No sol poente, uma velha casa de dois andares, friamente soviética, funcional, mas com janelas de madeira caprichadas, deterioradas pela velhice. Ainda que triste, a velha casa sorri, percebendo que foi percebida. Em outra, vizinha, os detalhes em madeira do teto e da janela foram recuperados. O teto cobrindo a entrada é sustentado por lindas ferragens fazendo curvas. Quanta atenção aos detalhes.

Espanto-me de não ter conhecido em abril um pouco mais deste lado leste de casas antigas de cossacos que aqui se instalaram no século XIX. Do lado do delicioso Parque Gorki. Nele há um lindo lago que reflete uma vista extraordinária do Kok Tobe, o morro que subi, com um bondinho, na minha vez anterior por aqui. Tudo neste parque me lembra a infância. Voltei a ser criança. Vejo pais e filhos juntos em pedalinhos, fazendo juntos cara de esforço. Brinquedos de parque de diversão - um chapéu mexicano! Barco viking! Tudo tão colorido no anoitecer! Um anoitecer de Sol de ouro. Crianças rindo, crianças chorando. Umas trepam em uma escultura de uma pantera. O pai as dirige para a fotografia que vai tirar - posem! E elas posam para a foto, todas as quatro crianças na pantera, todas de idades diferentes, de uns quatro a uns 13 anos, com os olhos já puxados ainda mais espremidos por causa do Sol no rosto.

Também há um restaurante - bem no meio do lago, em uma ilhota. Lugar perfeito para uma cerveja no fim de tarde. Mas não era esse o espírito, para mim, naquele momento. Preferi tomar um sorvete.

A cerveja eu deixo para mais tarde, para bem perto do hotel. Fico empolgado em voltar a tomar uma caneca gelada de Urso Branco, a loira que marcou minha primeira passagem por aqui, em mesas animadas, com meus colegas de faculdade. A cerveja que as mulheres recebem em canecas com canudinho - sim, assim que servem cerveja às damas por aqui. Mas, desta vez, opto em tomar minha Urso Branco em um lugar em que nunca estive, em um restaurante sem nada especial a não ser a vista para a confusão do mercado central de Almaty.

Com o calor imenso que fez hoje, mergulhei de boca no néctar com grande deleite. Goles longos. Foi quase metade da caneca. Fiquei até com um bigodinho branco.

Compartilhei a mesa com Tagat. Pele bronzeada, barba rala - há três ou quatro dias esperando uma gilete -, olhos vermelhos, meio amarelados, que sugerem noites mal dormidas e dias de muito álcool e tabaco. Dentes tortos e amarelo escuros. Rosto suado e suante, molhando a camisa social bege de mangas longas e arregaçadas, manchada, encardida. Diz ser fotógrafo e que trabalha para um jornal local. Tagat combina com o cenário do mercado no fim de tarde, um cenário extenuado. É um homem gasto, um homem xepa. Mas muito curioso em relação a mim. Quando disse que era brasileiro, instantaneamente perguntou se eu era futebolista. Quis saber como meu país está se unindo para se preparar para a Copa do Mundo e a Olimpíada. Não evitei polêmicas - disse que mais brasileiros preferiam abrir mão dos dois eventos para investir mais em saúde e educação. Olhando para o burburinho no mercado atrás de mim, Tagat concordou com a cabeça. Me copiou, bebendo um longo gole de Urso Branco.

Perguntei se ele gostava de Almaty e do Cazaquistão. "Sim", respondeu. E só. Lancei minhas visões, para tentar estimulá-lo a falar mais. Expliquei que o Cazaquistão me fascinava por ser vários países em um, por sua diversidade de cenários. E o povo, dividido em suas tradicionais hordas, cada região com personalidades distintas. Um imenso país, uma cidade maravilhosa, cazaque e ainda muito russa, a querida Almaty. Ele pareceu não entender nada que eu disse. Balançou a cabeça, grunhiu palavras que não entendi, pelo canto da boca. Eu não precisava entender as palavras. Foi muito claro. O que ele disse foi: "Como alguém pode gostar de meu país, esta bagunça?"

Tagat olhou para o lado, para as barracas, os vendedores, o lixo no chão, a gente chegando, a gente saindo. O Cazaquistão, este grande mercado no fim de um longo dia.

Nos despedimos como se fôssemos velhos conhecidos. Como bom centro-asiático, Tagat apertou minha mão direita com suas duas mãos e sorriu, atravessando meus olhos com os seus. Agradeci o bate-papo. Saindo do restaurante, olhei para trás. O vi triste, acenando para mim. Como se ele não quisesse estar lá, como se eu, o viajante, tivesse sido para ele um alívio temporário, uma defesa contra o calor e o suor que nem a cerveja mais gelada estanca.


* * *

Antes, tive no hotel uma noite infernal, como há muito tempo não tinha. Como previsto, já que a janela não fechou, meu quarto se transformou em um refeitório para mosquitos. No meio da noite, podre de sono, acendi a luz e fui para o tudo ou nada, desesperado. Matei sete. Fui dormir, mas o estrago estava feito. Não preguei mais os olhos até o amanhecer. E quando amanheceu, e finalmente voltei a cochilar, o relógio tocou para a segunda parte do inferno.

A burocracia era um dos pilares do estado soviético e com certeza sobrevive como legado, de várias formas, na Ásia Central. No Cazaquistão, especialmente, há essa exigência ridícula, a de que estrangeiros que entram no país por terra se registrem na polícia migratória até no máximo cinco dias após chegarem ao país. Dá raiva o fato de que, quem chega de avião (como eu em abril), não precisa fazer isso. Só quem vem por terra. Provavelmente, os gênios que criaram a regra pensam que os estrangeiros que chegam do exterior pelo aeroporto são endinheirados empresários que não representam perigo algum. E os que chegam por terra são pobretões ou, pior, refugiados do Afeganistão. Os motivos não importam muito, na verdade. O fato é que lá fui eu perder o que esperava ser um dia inteiro nos corredores burocráticos cazaques.

Cheguei mais de uma hora antes de abrir o escritório da polícia migratória - que, felizmente, não era muito distante do hotel. Madruguei porque esperava que fosse ter fila, e de fato já havia gente esperando quando eu cheguei. Minha preocupação era conseguir o registro no mesmo dia, já que já amanhã eu espero estar longe de Almaty.

Quando finalmente as portas se abriram, fomos conduzidos a uma sala circundada por dez guichês diferentes com avisos exclusivamente em russo e cazaque explicando para que serviam - registro de estudantes, registro provisório de estrangeiros e assim por diante. Mais uma coisa que não fazia nenhum sentido para mim: num lugar onde estrangeiros são forçados a ir, não havia sequer uma plaquinha em inglês. Nenhum funcionário falava inglês. Não há como orientar os estrangeiros. Mesmo sabendo um pouco de russo, fiquei perdido, sem saber qual fila pegar para falar com qual guichê. Afinal, em uma sala circundada por tantas janelas é de se esperar que as filas se misturem e tudo vire um grande prato de macarrão.

Um cazaque simpático, com um bom inglês, me apontou a fila para a janela certa. Ainda demorou alguns minutos até que o burocrata cazaque chegasse e abrisse o guichê. Aí, foi rápido. Eu tinha tido o máximo de cuidado de trazer copias de tudo que eles pudessem querer, além dos originais. O burocrata pegou as fotocópias e os originais, os colocou de lado e disse para eu voltar às 15h. Ficou com meu passaporte. Então, das 10h30, quando saí de lá, até as 15h, quando voltaria, se um policial me parasse na rua e pedisse meus documentos, eu estaria com um grande, grande problema nas mãos.

Mas não aconteceu nada. Zanzei pela avenida Tole Bi e pelo Parque Panfilov, aproveitando o lindo Sol e buscando banquinhos na sombra para aliviar os pés. Voltei pontualmente às 15h e recebi o passaporte registrado. Nada de carimbos no documento, só um mísero papelzinho anexado ao passaporte com um clipe. Bem fácil de perder.

Planejo algo bem diferente para amanhã.

Grande Lago de Almaty, 1/9, 10h50

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