Sunday 29 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (IX): Shymkent

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3/9/2012

Várias batalhas estão sendo travadas no mundo islâmico no momento. Mas nos ex-países soviéticos de maioria muçulmana, tomados por um revivalismo religioso desde o final da URSS, essas batalhas ganham contornos diferentes, que vão muito além da religião. Elas estão marcando a alma dessas nações que estão ainda buscando estabelecer sua identidade, após anos de Homo sovieticus.

Uma das características do Islã no Cazaquistão é a força do sufismo, o lado mais místico dessa religião. O sufismo reúne ordens que buscam, de várias formas (podem ser rezas, cânticos ou mesmo dança), aproximar mais e mais os fiéis a Alá. Há um debate sobre o sufismo no país, uma discussão norteada pela aumento da influência de uma versão mais conservadora do Islã sunita, o wahhabismo - que se propaga mundialmente a partir da Arábia Saudita e que vê problemas no sufismo. Rustem me mostrou como ele e seus compatriotas estão encarando esse processo.

Meu amigo se prontificou a ir comigo a Sayram. Trata-se de um subúrbio de Shymkent, a cerca de 20 km do meu hotel. Sayram, cuja população é majoritariamente uzbeque, é um centro de peregrinação sufi, como fica logo claro pela quantidade de mazars, os mausoléus de "santos" (como o mausoléu de Aisha Bibi perto de Taraz). Esses locais, geralmente modestos, atraem pessoas que lá vão rezar e buscar alguma bênção, fazer pedidos e ficar em silêncio contemplativo. Os locais obviamente não são mesquitas - por aqui, eles são pequenos, às vezes simples cubos com uma arquitetura islâmica pouco refinada, de tijolos, luas crescentes e inscrições em alfabeto árabe, além de, é claro, a tumba do "santo". As pessoas acham que, nesses locais, ficam mais perto do Criador. A lógica é que, ao se aproximarem de uma pessoa iluminada por Alá quando viva, elas irão também receber graças.

Como ocorreu em Aisha Bibi, visitei alguns locais e não senti nada além de uma atmosfera boa de paz e serenidade, uma sensação de calor na alma, de beleza e de amor. Lá encontrei várias pessoas em silêncio, buscando algo invisível. Mas Rustem não vê futuro para esses locais.

Para ele, os inúmeros mausoléus em Sayram em breve vão estar às moscas porque, um dia, todas essas pessoas serão educadas para observar o "verdadeiro" Islã. O "verdadeiro" Islã, lembra ele, não prevê a veneração de "santos". De fato, "santos", no contexto católico do termo, não existem no Islã mais conservador, que prega uma relação muito pessoal e direta entre o fiel e Alá, sem sequer (no caso do sunismo, o ramo majoritário da fé) a existência de um clero. Rustem acredita que muitos dos que visitam os lindos mazars, alguns construídos no século X, rezam para os "santos", não para Alá. Ou seja, para essas pessoas, os "santos" seriam "deuses". "Mas o único Deus é Alá", diz, com uma ponta de desprezo.

Meu amigo continua. Explica o caso de seu próprio irmão, que tem uma visão mais ortodoxa. Enquanto Rustem acredita que os mazars simplesmente vão desaparecer naturalmente à medida que as pessoas conheçam melhor o "verdadeiro" Islã, o irmão, que acabou de voltar da peregrinação a Meca, tem raiva dos sufis porque os sufis, segundo ele, perpetuam uma visão errada do Islã. Seguindo a lógica, eles devem ser ativamente desestimulados e até mesmo combatidos. Os wahhabistas chegam a extremos nessa convicção, cometendo ataques contra seus próprios irmãos de religião e, claro, os "infiéis" que não seguem o Islã.

Com o Sol leve da manhã batendo nas cúpulas de tijolos dos mausoléus, a paz reinando nos floridos jardins, falo a Rustem sobre minha preocupação com o fato de que o sufismo é parte da história e tradição dos cazaques, dos centro-asiáticos em geral, e opino que, por isso, deveria ser preservado. É parte do islã tradicional daqui. Antropólogos identificam nos rituais sufis traços de cerimônias e crenças que antecedem a chegada dos primeiros muçulmanos à região. Além disso, embora rezar para "santos" seja algo errado segundo o Islã mais conservador, questiono se essas pessoas nos mausoléus realmente estão rezando para eles como rezam para Alá. Questiono se não estão fazendo o que se faz por aqui há centenas de anos - buscar, nesses mausoléus, simplesmente inspiração para serem bons muçulmanos, o gostoso calor no coração ou consolo que vem da sensação de estar um pouquinho mais próximos de Alá. Como muitos cristãos, que encontram uma paz meio inexplicável ao visitar uma igreja. Nesse caso, seria errado que os moradores de Sayram visitem os mazars?

Digo: o Islã é lindo em sua diversidade. Do Marrocos às Filipinas, todos buscam Alá, mas com suas variações regionais. A religião islâmica sempre foi flexível, e foi isso justamente que permitiu que ela se expandisse tanto. Mas os conservadores wahhabistas, com o poder do petróleo saudita, espalham uma visão estrita, de leis definitivas e sem discussão. Como se o Corão, assim como a Bíblia, não fosse dado a interpretações. Por serem muitas vezes literais, por desprezarem sábios que dedicaram séculos estudando as sutilezas do Texto, os wahhabistas criaram um dilema existencial em todos os muçulmanos, fomentaram um conflito que agora se traduz em extremismo. Quem está certo, perguntam. Sendo que não há resposta. A pergunta está errada.

Rustem ouve minha argumentação e não parece convencido. Mas, por ora, visita os mazars comigo e observamos, juntos e com respeito, os fiéis. A maioria aparenta ter mais de 50 anos. Alguns levam seus netinhos. Será que esses netinhos levarão seus próprios filhos para visitar estes santuários?


* * *

De volta a Shymkent, Rustem me fala de sua família. A tradição por aqui, vinda do passado em que os cazaques eram todos nômades, é os pais do marido morarem com ele, todos juntos com a esposa e os filhos. A mulher abandona sua primeira família após o casamento. Também é comum os irmãos do marido dividirem o mesmo teto com o casal. Como resultado, as casas geralmente têm muitos moradores - no caso da de Rustem, moram com ele seu pai e sua mãe, sua esposa, o filho do casal, o irmão de Rustem e a cunhada de Rustem. Sete pessoas.

Outra tradição aqui, que mostra novamente a força das famílias em comparação com o que vemos nas sociedades ocidentais, é a regra das sete gerações, o jeti ata, que eu já havia conhecido no meu curto período vivendo em Almaty. Se espera que todas as pessoas no Cazaquistão saibam recitar de cor o nome de seus antepassados da linha paterna até pelo menos a sétima geração anterior - pai, avô paterno, bisavô, daí em diante até a sétima geração. A ideia, nos séculos passados, era permitir aos cazaques saber quem era parente de quem, evitando, assim, casamentos entre membros de sua família estendida. A genealogia também permitia uma clara associação entre a pessoa e os diferentes níveis de organização da sociedade cazaque - nível de família, o nível de clã mais acima e, por fim, o nível de confederação ou horda tribal (jus), unindo uma nação nas vastas estepes vazias. Com a colonização do Império Russo no século XIX, a sovietização no século XX, a ocidentalização após a independência e a urbanização durante todo esses anos, cada vez mais estas tradições vão se erodindo. Já não é tão raro encontrar um cazaque que não saiba direito seu jeti ata.

Por aqui em Shymkent, as tradições cazaques falam bem mais alto do que na grande Almaty. Meu colega confirma. Além de as pessoas não poderem se casar se coincidir algum de seus sete ancestrais da linha paterna, se noiva e noivo forem de religiões diferentes, é ainda mais improvável que as famílias aprovem o casamento. A mesma coisa se forem de etnias diferentes: um uzbeque e uma cazaque, por exemplo. A etnia tem sido um empecilho especialmente entre as elites. Mas, diz Rustem, a religião é uma barreira muito maior. E não é à toa que, com tantos poréns, existam no Cazaquistão tantas histórias de amores trágicos, como a de Aisha Bibi, com fugas, desonras e mortes. E, entre as famílias pobres do interior, pipocam histórias em que o noivo sequestra a mulher para tomá-la como esposa. Casos assim, também no Quirguistão, já ganharam manchetes no Ocidente. Causaram escândalo entre os defensores de direitos humanos.

Rustem se despede de mim. Vai trabalhar e, eu, vou passear pela cidade. Nos restaurantes e bares das ruas sombreadas do centro, a língua cazaque é onipresente. Vinte anos após o fim da URSS, o russo está em extinção: canso de ver cartazes apenas em cazaque, sem tradução para o russo, ainda muito visível em Almaty. Nos bares, frequentemente, o aviso: "vende-se cerveja sem álcool". Mais um sinal da forte influência do Islã.

Uma cidade com uma cara cazaque mais pura, pouca mistura com os russos que aqui tiveram poder tanto tempo, e em que o Islã, com suas cores centro-asiáticas, tão características, ainda sobrevive, ainda que ameaçado.

Shymkent, 4/9, 8h05

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