Sunday 8 October 2017

Nos Desertos, nas Montanhas (III): Tamchy

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28/08/2012

Minha decisão foi ir a Tamchy, uma cidade a uns 30 minutos de carro de Cholpon-Ata, também à beira do lago, também um balneário, para ter uma outra visão da "riviera quirguiz", com menos gente e agitação. Antes, porém, decidi iniciar um longo passeio a pé por ruas perdidas de Cholpon-Ata, em direção às montanhas. O ar seco, a poeira e o calor sufocante me acompanharam pelas ruas sem asfaltar. O lugar me lembrava uma periferia qualquer, sem nenhuma casa ou construção mais chamativa.

De repente, encontro, à minha direita, um guarita na frente de um descampado amplo com um aclive progressivo, no pé da serra. Vejo lá pedras arredondadas, todas grandes, umas maiores, outras menores. Nelas, os fantasmas da pré-história.

Encontro nas rochas muitas inscrições, fracas e desaparecendo. Pinturas rupestres datando de a partir da era do bronze, aproximadamente do segundo milênio antes de Cristo. A essas pinturas, outras foram sendo agregadas, cortesia de povos que passaram pela região. Vieram os sakas (ou citas), os ancestrais habitantes da Sibéria, citados por Heródoto em suas crônicas, que ocuparam a região do Issyk-Kul e deixaram seus rastros entre os séculos VIII e III antes de Cristo. E os povos túrquicos, antepassados dos turcos, que em uma primeira leva de invasões vindos do que é hoje parte da China e Sibéria dominaram uma vasta área ao redor do lago por volta do século VI depois de Cristo.

Decepcionei-me. Esperava mais quando me disseram que este tesouro estava exposto aqui. Tirando um ou outro rabisco mostrando bodes selvagens e leopardos-das-neves, os demais são pequenos demais e estão quase invisíveis. Como se não bastasse, há poucas indicações no local sobre onde encontrar as inscrições, e a quantidade de pedras não é pequena. Passei mais de uma hora "caçando" inscrições, tentando entender o que elas significavam (em muitos casos, não é fácil sem um estudioso explicando), como se eu fosse um observador do céu noturno que tenta desenhar com os olhos as constelações sem ter nas mãos uma carta celeste. O lugar todo parece meio abandonado. Na guarita na entrada, onde supostamente alguém estaria vendendo entradas, não encontrei ninguém. Não há nada protegendo as pedras dos elementos. Assim, não é de se estranhar que as linhas vão se apagando, cobertas por sujeira e então lavadas por chuvas infinitas.

Mas nada de chuva neste momento. Caminhando e olhando os desenhos, tive que parar umas duas vezes para recobrar o fôlego, tomar água e reaplicar bloqueador solar, tamanho era o sol das 9h30 da manhã. Quase não conseguia me concentrar para ver a arte rupestre, gotejando suor nas pedras.

Retomei a caminhada, indo dali até a estrada principal, lá embaixo, a mesma que vai até Bishkek. Totalmente distraído, quando olho ao redor vejo que estou no meio de uma vasta pista asfaltada, basicamente uma longa reta refletindo o sol. Ela surge do nada e não é a estrada. Não vi nenhuma placa explicando onde eu estava, não enfrentei cercas, nada. E, de repente, vejo um carro a milhão me ultrapassando, passando a uns três metros de mim. Me pergunto se estou em uma pista de corrida. E continuo com essa teoria até que, finalmente, quase chegando à estrada principal, vejo um helicóptero estacionado ao lado de uma casa, os dois tripulantes à beira da pista. Estou no aeroporto de Cholpon-Ata. Sim, estava andando no meio da pista, correndo o risco de ser atropelado por um avião pousando! Pelo jeito o pessoal aqui não liga muito para segurança e usa a pista para se divertir (daí o motorista que passou com seu carro ao meu lado) ou se deslocar para casa, como se esta fosse uma avenida como qualquer outra.

De qualquer forma, o lugar não deve receber muitos voos. Novamente, como no campo das pedras, ele me pareceu às moscas.

Continuei descendo. À minha frente, exatamente à minha frente, um sol imenso iluminando o lago cintilante. Azul e calmo.

Na estrada principal, penei horrores para conseguir parar um táxi coletivo que topasse me levar a Tamchy por um preço honesto. O transporte por lotações e táxis compartilhados é muito mais comum de que o por ônibus na Ásia Central, e aqui não é exceção. No entanto, os motoristas encontram um turista e só enxergam cifrões. Pechinchar é fundamental. Dois carros pararam, e os motoristas propuseram me levar pelo mesmo preço que eu havia pago pela viagem inteira de Bishkek para cá. No final, um grupo, incluindo dois velhinhos simpáticos usando o tradicional chapéu ak kalpak, topou me levar por cem soms (aproximadamente US$ 1,5). Mas tive que me virar com meu russo limitadíssimo para explicar como estava viajando com tão pouco dinheiro e assim precisava de um desconto na corrida.

Foi a primeira vez que pude ver de perto o ak kalpak. No meu dia caminhando em Bishkek, encontrei muitos homens usando-o, mas não a uma distância que me permitisse ver seus detalhes. Adoro chapéus, especialmente os centro-asiáticos, e o ak kalpak é, entre eles, provavelmente o mais exótico: branco, com detalhes pretos bordados com padrões tradicionais quirguizes, e alto - como se fosse uma cartola feita de feltro branco. Para terminar, de sua ponta, lá no alto, despenca um rabicho, uma linha que termina em um nó e um pequeno pincel. Muito bonito. O senhor quirguiz abriu um imenso sorriso de dentes de ouro quando elogiei sua indumentária.

Em Tamchy, tive minha primeira experiência de turismo comunitário no Quirguistão, uma ideia muito interessante para impulsionar a economia local. As comunidades em lugares pobres, mas com potencial turístico, se mobilizam para criar um centro para turistas em que os visitantes são conduzidos a pernoites nas casas dos locais e podem contratar guias para passeios. Uma associação nacional surgiu para dar apoio aos quirguizes interessados em empreender, ajudando na organização, explicando como converter casas em pousadas e o que oferecer ao turista. O esquema é bem-sucedido, trazendo divisas valiosas para comunidades de baixa renda, ajudando a desenvolver a infraestrutura e impulsionando mais e mais o turismo. No caso, em Tamchy, uma senhora com bom inglês me recebeu em uma pacata casa à beira da estrada. Era o escritório da associação local de turismo comunitário. Fui tratado com muito carinho. Logo ela me arranjou um lugar para ficar em uma propriedade próxima, pertencente a uma outra senhora, nos fundos de um terreno com árvores frutíferas. Havia lá duas casas - uma, a da mulher e sua família, e, a outra, o "hotel" - com salas espaçosas e tapetes cobrindo o chão de madeira e uma dez camas espalhadas em três cômodos. Do lado de fora, uma casinha com um chuveiro morno e outra com uma privada - um conforto a mais depois da pousada em Cholpon-Ata com o buraco no chão, para se agachar. Tudo, 500 soms (aproximadamente US$ 7), com café da manhã.

Cheguei a Tamchy às 15h30. Depois de me registrar no "hotel", o resto do dia se desenrolou muito como em um dia de verão numa praia brasileira. Fui para o lago. Havia muita gente na areia aproveitando o tempo bom e a água azul, mas bem menos do que em Cholpon-Ata. Em Tamchy, a extensão da praia também era maior. Andando descalço na areia, depois de alguns poucos minutos encontrei um espaço desocupado e me deitei. Cochilei no sol.

Uma hora depois, me emocionei ao, finalmente, entrar no Issyk-Kul pela primeira vez. Enfrentei os seixos pequenos e dolorosos sob meus pés nos passos para o fundo. Foi estranho sentir a temperatura. Fiquei instintivamente esperando uma água bem fria, mas já sabia que não era assim. Estava tépida, agradável, quase que uma extensão da temperatura do meu corpo. Muito transparente, sem nenhuma onda. Meus pés permaneceram visíveis, mesmo estando eu mergulhado até o peito. A água é salobra, mas não muito - um gosto parecido com o da água mineral engarrafada que havia comprado mais cedo.

Novamente, como em Cholpon-Ata, lixo na praia. E, aqui, camelos para turistas tirarem fotos. Já vi mais camelos por essas bandas do que em qualquer outro lugar na Ásia Central em que estive anteriormente. Mas sempre conduzidos por gente procurando conseguir uns trocados dos visitantes com dinheiro para jogar fora. Se existem livres na natureza os famosos camelos-bactrianos descritos por viajantes antigos, esses camelos naturais do coração da Ásia estão bem escondidos. Também encontrei umas vacas na areia, tranquilíssimas, totalmente no espírito do verão.

Mais tarde, a caminho do anoitecer, saí da praia para caminhar pelas ruas de terra do vilarejo. Foi quando uma legítima tempestade de areia transformou o panorama. Ela veio do nada, de repente. O forte vento levantou a areia da praia e a poeira das ruas, que chicoteavam minha pele e me impediam de abrir os olhos direito. De repente, me encontrei em uma cidade fantasma, quase um cenário de filme de faroeste: 17h30, o Sol ainda forte, o ar intransponível e amarelado, pouquíssimas pessoas ao meu redor, portas e janelas batendo, um homem com um cavalo passando apressado, tentando proteger o rosto. Nessa altura, pelo menos a temperatura do vento estava agradável. Mas o Sol teimou em não enfraquecer até muito pouco antes do anoitecer. Voltei brevemente à pousada para me proteger.

De noite, o vento se acalmou. Eu e um casal de turistas hóspedes na mesma casa decidimos enfrentar as ruas novamente para comer alguma coisa. No único restaurante que achamos, houve uma queda de energia. Na escuridão só iluminada por um lampião na cozinha, vi o casal europeu atacar dois apetitosos espetinhos de carne bovina, cheirosos, com uma salada de cebola ao lado. Eu fiquei sem o lagman (talharim estilo asiático, grosso, achatado) que pedi, o cozinheiro esqueceu de cozinhá-lo quando a luz acabou. Apesar da graciosa oferta do casal, não quis comer carne - nem sei porquê. Fui para casa comendo um pedaço de pão com pimenta, restos da janta dos dois. Fiquei satisfeito.

Mais uma vez, me espantou a pobreza e falta de infraestrutura dos locais. Estamos numa região turística, o dinheiro dos visitantes flui. Eu esperaria que o governo investisse aqui. Mas, aparentemente, não há coleta de esgoto. Na casa onde fiquei, por exemplo, não há, apesar de ela ser grande e confortável. Notei que a privada, com a qual me empolguei mais cedo, simplesmente cobre um buraco profundo na terra (novamente, como na pousada em Cholpon-Ata). A água vem de poços - trazida para a superfície por bombas manuais. A falta de saneamento acaba impulsionando todos a manter o hábito tradicional de ferver água e tomar chá quente, mesmo no calor. Além disso, nenhuma rua, a não ser a estrada principal para Bishkek, é asfaltada. Muitas casas aparentam estar largadas, precisando desesperadamente de uma reforma. São de alvenaria. As mais bonitas estão próximas à praia, onde está sendo construído um hotel chamado "Old Castle", assim mesmo, em inglês. Basicamente, a réplica de um pequeno castelo, com uma torre. Será que atrai turistas?

Apesar da riqueza de frutas - novamente vi árvores carregadíssimas, de maçãs e damasco, e encontrei geleias maravilhosas à venda -, toda a economia local parece depender exclusivamente do turismo. Muitos alugam quartos, outros têm pequenos empórios ou bares, todos apostando nos meses de sol. Não imagino quão deprimente seja esta região no inverno, com o vento desta tarde igualmente forte, mas gelado, com o tempo nublado, sem um turista sequer. Mas a beleza do Issyk-Kul serve de consolo.

Tamchy, 29/08, 7h

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