Saturday 12 October 2013

Diário de Almaty (III)

06 e 07/04/2012


Um grupo de moças muito bem vestidas, com suas saias e vestidos, batons cor-de-rosa e vermelhos, longos cabelos, curvas voluptuosas de adolescente, se levanta e deixa suas mesas na sala pouco iluminada. Elas são atraídas para a pista de dança pelo Ai Se Eu Te Pego irresistível de Michel Teló. Dançam meio timidamente, os cotovelos bem para baixo. Do sofá onde estou sentado, observo com curiosidade bebendo minha cerveja marca Bavaria. Lá fora, mesmo a esta hora da noite, o barulho dos carros na avenida, trânsito intenso. São quase 23h.

Poderia ser uma descrição de um sábado qualquer em uma capital brasileira. Não imaginava isso em Almaty. Não imaginava mesmo. A música de Teló tomou o planeta, e essas demonstrações da força da globalização cultural (há quem diga mau gosto global) nunca deixam de me espantar. É o terceiro dia seguido que ouço na cidade essa música. Ontem, foi aqui mesmo, nesta boate meio empoeirada.

E, pasmo, observo, logo depois do Teló, duas dançarinas, com aqueles vestidos de dança cigana, longas saias semitransparentes. Elas atravessam o salão do restaurante escuro ao som de uma música russa. A fraca luz meio-vermelha-meio-alaranjada se reflete em seus olhos e nas lantejoulas penduradas nas suas cinturas. Sacolejam. Uns passos que lembram uma dança espanhola. Tantas referências a outros lugares. Penso, puxa, eu gostaria tanto de estar aqui no Cazaquistão. Isso é aqui? Sim, isso é aqui.

Michael, à minha frente, tomando uma cerveja comigo, é viajado, conhece a maioria das capitais da antiga URSS. Para ele, Almaty é a mais russificada das capitais da ex-potência, fora, é claro, da Rússia. Aqui se fala russo e, menos, bem menos, cazaque. Mas professores de cazaque lucram em Almaty. Cada vez mais, a língua se torna visível onde até alguns anos atrás não estava. Outdoors hoje são quase todos em cazaque e russo, mas o cazaque em primeiro plano, em letras maiores. Há jornais em cazaque. Há TV, rádio em cazaque. Tudo isso ainda parece estranho em Almaty, com seus russófonos. E cria essa demanda por professores. Vi anúncios em pontos de ônibus, muitos anúncios, professores oferecendo não só aulas de cazaque, mas de cazaque e inglês, nessa ordem. Os anúncios destacam – aulas de cazaque, em letras chamativas. Mais para baixo, mais discreto, a oferta de aulas em inglês. Na verdade, isso me estranha um pouco – como assim? Esse pessoal deveria estar todo falando inglês. O que eu vejo até agora por aqui não é a cultura das estepes, ou a cultura muçulmana, ou mesmo a dos colonizadores do norte. O que eu vejo em toda parte é o capitalismo global e referências culturais misturadas, sem nexo, referências-embalagens para vender algo, tudo com sotaque americano. Carros possantes, caros e imensos, música pop, cartazes imensos com ofertas de bens de consumo de lojas de departamentos e meninas com minissaias, comendo pizza, cheirando a Coca-Cola e dançando Michel Teló. Mas falando russo e, cada vez mais, cazaque. Ainda engatinhando no inglês.

Ao sul da Tole Bi, pela rua Ablai Khan, mais da Almaty dos USA, mas com um tom menos classe média que na boate. Lojas grã-finas, restaurantes caros e confortáveis, frequentadores com relógios brilhantes, botas de couro, cães bem tosados na coleira. Os cães que desfilam seus donos lindos e perfumados, frequentadores de academias. Almaty, enfim, tem muito de cidade ocidental. Com esqueleto soviético, russo, muçulmano e cazaque desses prédios e monumentos perdidos a cada esquina.

Os ossos do Império Vermelho estão pertinho. Um impressionante monumento, com estátuas com músculos poderosos e salientes em eterno movimento, que lembram 28 soldados soviéticos de uma divisão de Almaty que enfrentaram os nazistas nas redondezas de Moscou em 1941. Nos tempos soviéticos, a lenda de que eles lutaram até a morte e paralisaram 18 tanques alemães os transformou em heróis. No monumento, suas feições parecem ecoar uma glória velha e que teima em não morrer. A glória de um país poderosíssimo, gigante, unido. Bate uma pena que tamanha glória tenha sido incapaz de prevenir o fim da URSS - que, é claro, trouxe coisas boas e ruins. As estátuas dos soldados se juntam, misturam-se, transformam-se em um só corpo, que parece formar o mapa da URSS. Melancolia orgulhosa. Thubron me encontra.

It was one of those soulful hymns to glory and sorrow which scatter the battlefields of western Russia with a proud melancholy. I stared at it with disquiet. Far from the pain and chaos of real war, these inflated heroes – impossibly grim and muscled – breasted their plinths in a Socialist Realism which stopped reality dead and turned their action inimaginable.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia

À frente, uma chama eterna para os soldado mortos, tanto os que caíram contra os nazistas quanto os que se foram durante a guerra civil que se seguiu à Revolução Russa e que acimentou a pátria-sonho de Lênin. Impossível não pensar que a chama eterna aqui não é para os soldados, mas para o país que deixou de existir, um lamento luminoso, apesar de todo o sofrimento que os líderes soviéticos causaram.

Mais ao norte fica o principal bazar de Almaty. Chamado de Bazar Verde, ele é bem diferente de outros mercados que já visitei na Ásia Central – parte dele é tão limpa e organizada que parece um supermercado. Do lado de fora, contudo, é mais tradicional, eis a bagunça querida, vendedores de tudo demarcando seus territórias em uma rua próxima. As frutas, tão doces e coloridas, e a vasta variedade de frutos secos está lá, na parte limpinha. Mas falta algo, falta o espírito. Saio para onde está a bagunça, respiro aliviado vendo as vendedoras gordas com dentes de ouro. Algumas vendem carnes e, entre as carnes, eis que avisto um casal vendendo lindas cabeças de cabra frescas, ainda com os pelos do animal e os olhos. Um festim para moscas.

Lá, do lado da confusão, a mesquita central e seu domo dourado. Linda, imensa. Parecia vazia, parecia apenas um monumento. Na rua, as senhoras, por toda a parte, cobrem a cabeça, como pede a tradição islâmica. Mas não vejo ninguém saindo do magnífico templo. Me pergunto, afinal, o que é essa mesquita? Nada hoje, aposto que muito na sexta-feira. Como no Brasil, onde para muitos, muitos, igreja só existe no domingo. Aqui, esse é um legado soviético, essa aparente apatia religiosa? Mais sinais de uma cidade secularizada? Generalizações apressadas essas. Volto aqui outro dia para ver.


***

Pela manhã, na universidade para mais contato direto com a elite cazaque. Duas professoras de inglês, de uns 25 anos de idade, nos levaram para almoçar. Uma, bochechuda e muito simpática, falando muito, fascinada, obcecada pela Coreia, vivendo em uma terra que recebeu milhares de coreanos reassentados por Stalin. Conheceu os dois coreanos do nosso grupo e pulou com a oportunidade de praticar a língua que aprendera na faculdade. No almoço, acabou separada dos coreanos, sentando-se comigo e com um outro colega da minha faculdade, inglês. Admitiu que queria ter se sentado na outra mesa. Admirei a franqueza. De fato, não conseguimos, nem ela, nem eu, encontrarmos muito papo em comum.

A outra professora, muito bonita e misteriosa. Cabelos negros curtos, lisos, cortados na altura do queixo. Óculos de armação também preta, olhos escuros, olhos puxados de cazaque, nem tão fechados, certamente nada abertos. Lábios carnudos, menos bochecha que a amiga. Falando pouco. Uma fofura. Antes de sairmos para procurar o restaurante, perguntei jovialmente se seria ela nossa anfitriã no almoço. “Não”, respondeu, ríspida, agressiva. Acho que ela não entendeu a pergunta. Logo depois estava conosco, caminhando, em direção a um restaurante na rua Ablai Khan. No almoço, séria, reservada, desarmou qualquer piada. Na volta, caminhamos juntos. Nenhuma risada. Pensei que talvez, para ela, fôssemos apenas uma obrigação burocrática, levar os gringos para almoçar.

Vim a Almaty trabalhar na minha dissertação de mestrado. Para isso, dependerei dos favores de estranhos, como as duas professorinhas, para fazer as entrevistas que ambiciono fazer, com políticos, em russo e cazaque. A professora séria se comprometeu, claramente sem a menor vontade, a me ajudar, traduzindo uma carta de apresentação minha para o russo. De volta do almoço, já na universidade, encontramos um outro professor, A., com quem me dei melhor. Como Max no outro dia, foi simpatissíssimo, perguntando sem cerimônia sobre tudo em nossos países. Respondemos... sobre tudo em nossos países. Brinquei em minha cabeça – seria A. um espião, amigo de Max, tentando obter informações sobre os forasteiros? Se for, não me importa. Dei dois tapinhas em seu ombro – “ei, amigão A., pode me ajudar a encontrar uma boa alma que me ajude a traduzir umas entrevistas?”, perguntei. “Vou ver”, disse ele, “até terça te respondo”.

No final da tarde, pegamos um táxi para voltar ao alojamento. Tudo parado na Tole Bi. Alguns Ladas velhos se misturam aos utilitários esportivos possantes. Todos cobertos com a mesma poeira. De repente, lembrei que era Sexta-Feira Santa. O congestionamento talvez seja do pessoal tentando sair da cidade para aproveitar os dias de folga fora daqui. Como no Brasil.

A Santa Sexta-feira foi embora, foi lentamente. Não tive muita coisa para fazer, fiquei entediado e ao mesmo tempo deslumbrado naquele prédio maravilhosamente soviético da KBTU, imaginando onde eu estava, no mundo distante, distante. Com vontade de botar o pé na rua, de ver o resto da cidade. Não fica bem, pensei, não fica bem, estou aqui com um objetivo. Quando a vontade estava já insuportável, ali me encontrei, olhando a linda cidade e suas montanhas, suas pessoas meio esquisitas, tudo pela janela do táxi. No congestionamento. Em outro ritmo. Entrando em sintonia.


***

De volta à noite, ao bar e ao Michel Teló. Me convenço, meio na marra, sem estar muito convencido, que a identidade original deste povo ainda está por aí, nos detalhes que os turistas nunca vão ver.

Uma colega na mesa fala do enigma das árvores. Desde que chegamos aqui, ficamos intrigados com o fato de que os locais se reúnem em grupos numerosos e varrem parques, praças e áreas verdes de forma voluntária. Geralmente aos sábados, daí o nome desses mutirões, subbotnik, derivado da palavra em russo para sábado. Eles surgiram na era soviética. Eis um excelente legado dos tempos vermelhos, penso eu, a cooperação de todos pelo bem comum. O Brasil se beneficiaria demais se tivesse isso. E eis que, no meio do mutirão, o tal enigma. Após a faxina, alguns dos voluntários agarram broxas e pintam os troncos das árvores de branco, do chão até uma altura de mais ou menos um metro. Lembro já ter visto isso no Brasil. Acho, mas não tenho certeza, que é para matar bichos, insetos. Colocam cal nos troncos. Será que é eficiente mesmo? Eles parecem fazer a pintura sem questionar, sem pensar. É simplesmente automático. Mas eu não consigo parar de me perguntar - por que pintar todos troncos de branco? Para que todo esse trabalho? Para que ter as árvores todas de camiseta branca, uniformizadas?

Meus questionamentos depois causaram perplexidade, quando fiz perguntas na universidade para um ou outro. De fato, pintar as árvores de branco parece ser algo tão tradicional e automático que ninguém sabe o porquê, ninguém sequer parece ter refletido sobre o assunto. “Não é para sinalizar as árvores para os motoristas, para evitar acidentes?”, me pergunta um estudante. Talvez, mas, retruco, então por que pintar uma árvore que fica no centro de um parque, cercada de árvores de troncos grossos de todos os lados? O carro vai chegar lá, no meio? O estudante balança a cabeça, mudo. Pedimos outra cerveja. A Bavaria (certamente não a mesma servida no Brasil!) chega perfeita, suando, com colarinho regulamentar de três centímetros, meio litro de puro deleite. As risadas retrospectivas do dia seguem um pouco mais e são afogadas nos goles gelados, aliviando o calor suave da noite.

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