Sunday 6 October 2013

Diário de Almaty (II)

04 e 05/04/2012

Poeira, ar cinza, ar seco. Calor às 8h da manhã. Um turbilhão de referências na minha cabeça, na periferia de Almaty. Ao fundo, os picos brancos da cordilheira de Tian Shan, as montanhas celestiais, fazendo a barreira natural do sul. As montanhas me remetem as do filme Os Brutos Também Amam (1953), um clássico do faroeste. Há todo um clima de velho oeste por aqui.

Após comprar algo para comer no supermercado Ramstore, sentamos, eu e meus colegas de faculdade e de viagem, no forte sol da tarde, em frente ao supermercado, à beira da avenida Tole Bi. Quase não consigo abrir os olhos pela luz, pela poeira. No trânsito, os carros em fila passam em câmera lenta. As pessoas são mais rápidas. Pela calçada, algumas russas, loiras, olhos claros, outras cazaques, cabelo negro, olhos puxados, bochechudas. Algumas poucas pessoas com feições misturadas também cruzam à nossa frente. Quase sem olhar para nós.

Duas mulheres agora vêm vindo pela calçada. Uma delas, vestida discretamente; a outra com um generoso decote, peitos quase libertos à mostra, gordinha. Na calça preta estilo jeans, uma daquelas fivelas decorativas, no cinto. Gigante essa fivela, surreal, com cores berrantes, reluzente, feita aparentemente de acrílico. Poucas – duas até agora – crentes muçulmanas, vestindo seus longos vertidos-cortinas. Uma delas, toda de preto, totalmente russa. Seus cabelos dourados meio visíveis embaixo do véu negro. Seus olhos azuis cintilantes atravessando a poeira.

Os prédios residenciais da era soviética, caixas de concreto que, por aqui, têm seus detalhes singulares na fachada, referências a padrões decorativos orientais, curvos e geométricos. De Brasil, nada, ou quase nada. Na Ramstore, um tetrapak com suco de laranja “com laranjas brasileiras”. O calor de fato lembra o verão de São Paulo, e a poluição de veículos, e a poeira, um meio-dia em alguma periferia paulistana.

Estou numa cidade vibrante. Uma urbe poderosa, bagunçada, um monumento à pujança capitalista.

Passados alguns minutos, caminhamos para o alojamento estudantil a uma quadra da Tole Bi. O lugar oferece o mínimo necessário – cama, banheiro, algum lençol. Espero não passar frio à noite. Não vejo muitos cobertores. Tudo por aqui é muito seco. Minha garganta está raspando. Além da janela do quarto, caminhões e carros se estranham no asfalto fervente. A cortina não é nada contra a luz de fora. O sono da viagem ainda me persegue e torna tudo meio irreal, meio sonho. Claro demais. Cochilo até a tarde.

Bom voltar ao Turquestão.


***

Max passou três anos nos Estados Unidos. Não resistiu e perguntou de onde nós éramos, depois de nos encontrar em um restaurante perto de uma linda igreja ortodoxa não longe da Tole Bi, no centro da cidade. Sotaque americano, roupa formal, gravata, blazer, e o ouro brilhantíssimo substituindo os caninos superiores. Achou incrível que eu e meus colegas estamos estudando cazaque, língua que, segundo ele, é difícil demais. Não parou de fazer perguntas, claramente para exercitar o inglês. Diz que quer ir ao Rio (todos em todos os países do mundo parecem ter o mesmo desejo) e fala do Rio como se fosse o paraíso na Terra. Não quero nem conseguiria estilhaçar seu sorriso – digo e repito que o Rio é o Éden, que ele vai ser bem-vindo na minha terra distante. Digo que lá vão cansá-lo de tanto fazer perguntas sobre o seu país, este país.


- Nos Estados Unidos, a maioria das pessoas só conhece o Cazaquistão por causa do Borat. Muitos acham que meu país é uma ficção, uma piada – diz Max, com rosto que não demonstra condenar nem aprovar os americanos.
- Claro - respondo a ele -, no Brasil também. Infelizmente.

O restaurante é bem muçulmano. Curioso encontrar indícios de um vigoroso Islã arranhando a superfície de uma cidade à primeira vista tão secular, com tantas moças desfilando decotes, salto alto, maquiagem e cabelos ao sol e homems de terno, gravata, face bem barbeada e até nomes como “Max” (na certa, um apelido adotado pelo nosso amigo para torná-lo pronunciável para nós, visitantes). Dentro do restaurante, as mulheres estão todas cobertas, da cabeça aos pés, orgulhosas de seus véus. Me lembra o Vale de Fergana, o de Namangan, o de Margilan. Na TV, um programa ensina árabe corânico em cazaque. O professor-apresentador usa um chapéu parecido com o chapéu dopee uzbeque. Max me interrompe prontamente – o chapéu é parecido, mas o professor é cazaque.

Conversamos sobre a cidade. De manhã, um taxista, nos levando do aeroporto para o alojamento, nos pediu para comparar Almaty com a capital do Uzbequistão. “É parecida com Tashkent?” me perguntou, após eu mencionar que havia estado lá. Digo que sim, com a Tashkent de 2003 em mente. Avenidas de várias pistas, soviéticas, bulevares com árvores e mais árvores, fantasmagóricos edifícios do antigo Partido Comunista, com sólidas fundações, para não desabar nem com o pior dos terremotos. Um de meus colegas fala que Almaty lhe lembrou a Moscou de dez anos atrás: grande, agitada, mas ainda não tão sufocante como hoje. Coincidência eu ter estado em Moscou mais ou menos na mesma época que ela, no início da década passada.








































Há 20 anos, talvez Almaty fosse irreconhecível. Lembro-me da impressão de Colin Thubron. Sua visão da cidade no Cazaquistão ainda recém-independente, em 1992:

From my balcony in Almaty there was no sign that I was in a city at all. I looked across parklands where the spires of a cathedral hoisted gold crosses against the mountains (…) its grid of streets, mounting southward to the Tienshan foothills, ran half empty through hosts of oaks and poplars. Sometimes so dense were these trees, I imagined I was walking along tarmac tracks through a forest.
- Colin Thubron, The Lost Heart of Asia

Uma cidade não cidade, um parque. Nada parecido com o que vejo. Ainda. Ainda no restaurante, nos despedimos de Max. Já é bem de noite, e finalmente está ficando mais fresco e menos seco. Esperamos o bonde, que não aparece. Os ônibus que param estão superlotados. Acabamos voltando a pé para o alojamento, uma hora de caminhada. Meu colega Michael - um ex-policial britânico com seus 50 anos, careca, olhar e semblante duro, militar -, menciona no caminho a teoria verossímil de que Max era na verdade um agente do governo cazaque que veio averiguar que tipo de perigo representamos para o regime, se somos espiões, se somos agentes da ameaça estrangeira.

Na caminhada, à beira da Tole Bi, os playgrounds da elite brilham e piscam. Restaurantes grã-finos, todos meio vazios. Será que é porque é cedo, e os ricaços só aparecem depois? Um deles se chama Mammamia – escrito em cirílico, parece uma cópia pirata de um restaurante italiano. Passamos por uma lojinha de roupas. O nome, escrito em caracteres ocidentais, que por aqui é tão chique: Seniorita. Alguém deve ter tentado copiar o que ouviu em espanhol e não ficou muito bom. Dois dos meus colegas ainda têm energia para comprar umas cervejas. Fico tentado, mas vou dormir. Noite fresca. Nada de mosquitos. Dividindo o quarto comigo, um colega coreano, que chega às 2h da manhã, tropeçando. Sinto o cheiro de cerveja.


***

Acordo cedo para ir à escola. A antiga sede do Parlamento da República Soviética do Cazaquistão, na Tole Bi, é um imponente prédio com largas colunas de pedra sustentando a fachada, como um templo grego. A tinta descascando das paredes externas já sugere sua glória decadente. Dentro, o prédio parece chorar de saudade do tempo em que foi um dos mais importantes ou quiçá o mais importante da cidade. Paredes com massa corrida à mostra, soluções desleixadas para cobrir buracos. Lâmpadas que não funcionam. Corredores escuros, chão gasto de tacos de madeira, a escadaria com seus degraus de mármore com pedaços quebrados, desaparecidos. Depois da glória passada, a revanche presente. Mas o prédio está muito vivo. Hoje é a sede da Universidade Técnica Cazaque-Britânica, conhecida localmente como KBTU, onde eu e meus colegas vamos estudar durante as próximas duas semanas. Centenas de jovens cazaques bem-nutridos frequentam seus corredores, fofocam, se beijam, tocam música bate-estaca em alto volume para promover festas do centro acadêmico.

O edifício fica no centro velho de Almaty, numa zona de transição entre a região do bazar e a parte mais europeia da cidade, a que lhe dá a maior fama de cidade agradável, menos empoeirada que o subúrbio onde estou hospedado. Aqui há parques, catedrais e prédios soviéticos maquiados com cores que se assentam com facilidade no olhar. Provavelmente foi algum lugar por aqui que Thubron descreveu.

Novamente, o sol forte transforma tudo. Se ontem ele me levava ao velho oeste, agosta ele ressalta de forma estranha as cores, como uma foto da infância. Bebês e crianças combinam bem com este mundo. Estão em todo lugar nas praças. A linda, linda catedral, famosa nos quatro cantos da antiga URSS, inteirinha de madeira, sem pregos, eu logo encontrei perto da KBTU, no Parque Panfilov. Trata-se provavelmente do prédio mais conhecido de Almaty, o mais celebrado. Predominantemente amarela e branca, a Catedral da Ascenção, completada em 1907, parece de brinquedo. Fora, tem um xadrez vermelho e azul levando às cebolas douradas e às cruzes. Atrai como um imã, engole quem a observa, sem que se esboce reação. Brinquedo como se apresenta, alegra as crianças, que a circundam correndo, rindo, pulando. Ao entrar, porém, eis um quê mais soturno, como em todas as catedrais ortodoxas russas. A névoa das velas, as sombras se apresentam. Santos com olhares pesados, sombrios, frios. Impondo penitência. Nada se assemelha a um brinquedo. A catedral é de fato uma armadilha. Seduz com sua colorida fachada para que encaremos nossa culpa cristã, nosso pecado, a morte de nosso Salvador.








































Este é um mundo que se formou tarde. Estranho pensar que Almaty, a capital do Cazaquistão até 1997, surgiu só em 1854 – ou seja, 300 anos após minha São Paulo. Verny (o nome de Almaty na época do Império Russo) surgiu como surgiram muitos outras cidades na Ásia Central e no Cáucaso sob domínio dos czares: como uma fortaleza dos cossacos, duros pioneiros das mais distantes e inóspitas paragens. O local da nova cidadezinha fora ocupado no passado por um assentamento, Almatu, alvo de invasões bárbaras durante séculos, ator do rico comércio da chamada Rota da Seda, ligando a China ao Ocidente. O velho nome renasceu, transformando Verny em Alma-Ata já nos tempos soviéticos. Assim perdurou até mudar para o Almaty atual em 1993, após a independência.

A cidade testemunhou transformações radicais em 158 anos, especialmente nas últimas cinco décadas. Num país em que toda a tradição cultural está ligada ao nomadismo e à economia pastoril, aos vastos espaços abertos e aos rebanhos, a ideia de cidade foi quase sempre desconfortável para os cazaques. As maiores cidades “cazaques” desde os tempos do império e na União Soviética permaneceram dominadas por não-cazaques. Muitos russos emigraram para a região em busca de terras, ou para trabalhar como burocratas durante décadas em que pouquíssimos cazaques sabiam russo e tinham educação suficiente para desempenhar tarefas básicas da administração. Alma-Ata era um excelente exemplo. Bhavna Dave em Kazakhstan - Ethnicity, Language and Power (2007), destaca que, em 1959, os cazaques eram menos que 10% da população. Além disso, nos tempos soviéticos, o reassentamento de populações inteiras não-russas colaborou para tornar os cazaques estrangeiros em sua própria terra. Legiões de chechenos, coreanos e alemães do Volga passaram a viver no Cazaquistão. Muitos depois voltaram a suas terras de origem, muitos ficaram. Coreanos realmente não faltam em Almaty. Estão por toda parte.

Mas o povo cazaque foi retomando o que foi seu. Especialmente a partir de Brezhnev, não demorou para jogarem as regras do jogo, aprenderem russo, abraçarem as hierarquias e burocracias e sombrias alianças políticas e assim, espertamente, garantirem um certo grau de libertação de Moscou. E mais e mais, desde a independência, quando políticas estatais passaram a valorizar o uso da língua cazaque e trazer comunidades exiladas de volta do exterior. Ainda que desenraizados de sua pátria-mãe, muitos russos há gerações no Cazaquistão decidiram nos últimos 20 anos partir de volta para o norte, temendo algum nacionalismo cazaque. Outros, decidiram ficar e se encaixar de forma desconfortável à nova realidade de estar atrás da nacionalidade “dominante”.

Mas em Almaty, pelo menos, isso de dominância não é óbvio. Em toda parte se fala russo e há russos, que seriam cerca de 30% da população. E todos vivem em paz. As línguas cazaque e russa convivem. O Cristianismo ortodoxo dos eslavos e o Islamismo tradicional dos locais se cumprimentam. A cerca de um quilômetro da grande catedral de brinquedo, eis a maior mesquita da cidade e sua cúpula dourada. Me pergunto o porque dessa paz, se, em outros locais da antiga URSS, tanto sangue foi derramado em nome de etnias e fés.

De noite, o momento mais surreal do dia. Estudantes da universidade nos convidam para assistir um concurso de miss e mister KBTU. Apresentações de dança e filmes curtos produzidos pelos próprios participantes do concurso, que não avalia tanto a beleza, mas principalmente o talento artístico e o carisma dos jovens. O ponto alto foi um gordinho rebolando ao som de Michel Teló. Ai se eu te pego no Cazaquistão. Muitos dos estudantes cantam no palco sucessos americanos. Os curta-metragens que fizeram são de inspiração hollywoodiana. Em Almaty, mas muito mais em outro lugar. O tempo virou. Agora, uma chuvinha. A grande cidade vai ficando aos pouco em silêncio. Logo, logo, sequer um carro na rua.

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